Menu fechado

Aquisição e documentação de acervos museológicos

Este é o primeiro de uma série de artigos sobre Direito e Museus, com a qual pretendemos auxiliar os museus e outras instituições culturais a lidar com diferentes questões jurídicas, como as formas de entrada de obras de arte em acervos, as regras do Estatuto do Museus, a regulamentação da profissão de museólogo e até mesmo os cuidados na hora de planejar e executar uma exposição. Boa leitura!

 

Os acervos são, na maioria dos casos, o patrimônio mais valioso de uma instituição museológica (assim como de bibliotecas, arquivos e centros de documentação). Isto porque são constituídos de bens não apenas de expressivo valor econômico, mas também de notável importância histórica e cultural.[1]

Ao preservar, estudar e divulgar obras, objetos, documentos[2] e outras manifestações artísticas (materiais ou imateriais)[3], os museus[4] exercem uma atividade de interesse público, uma vez que contribuem para a valorização e acesso ao patrimônio e à diversidade cultural, bem como para a memória da produção artística de um determinado local e tempo.

Um museu irá obter e compor seu acervo de diferentes formas, a depender, entre outros fatores, da origem e características do item e do perfil do proprietário anterior. Ao adentrar a coleção, o objeto passa a ser um bem cultural musealizado, devendo ser obrigatoriamente conservado e protegido pela instituição, nos termos do art. 21 do Estatuto de Museus.[5]

Entre as formas de entrada de obras em um acervo museológico estão: compra, doação, legado, produção interna e guarda temporária.[6] Cada modalidade de incorporação requer uma documentação jurídica específica para comprovação da propriedade, sendo que tais documentos devem ser, idealmente, originais, datados e devidamente assinados.

 

COMPRA

Por meio da compra e venda, o museu adquire determinadas obras, de uma pessoa física ou jurídica, mediante o pagamento de preço acordado entre as partes (veja o art. 481 do Código Civil), em galerias de arte, feiras, leilões ou até mesmo direto com artistas ou seus herdeiros. Pode ocorrer tanto na hipótese de o museu já ter os recursos necessários para comprá-la, quanto no caso em que ele recebe uma doação em dinheiro para que a compra ocorra.

Um exemplo é a compra, pelo Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, da tela “A Lua” de Tarsila do Amaral, que pertencia desde os anos 50 à coleção Feffer, família fundadora da fábrica Suzano.

A documentação jurídica necessária é o documento de comprovação de pagamento (nota fiscal ou recibo).[7] A depender da situação, é recomendada também a redação de um contrato de compra e venda.

 

DOAÇÃO

Na doação, uma pessoa transfere gratuitamente uma obra de sua propriedade ao museu – tal como no caso do pintor alemão Gerhard Richter, que doou 100 de suas obras para o Museum der Moderne, que está em construção na cidade de Berlim.

A doação pode ser feita pelo próprio autor, como no exemplo de Richter, ou por terceiros (herdeiros do autor, patrocinadores, colaboradores e até mesmo outros museus), e o doador pode impor determinadas condições no momento da transação (geralmente incluir seu nome na legenda da obra) – o que chamamos de encargo.

Para comprovação de propriedade, deve ser redigido um contrato de doação, nos termos dos artigos 538 a 564 do Código Civil. O termo deve tratar, entre outros tópicos, da posse e propriedade pacífica e incontestada do doador, da transferência de direitos de propriedade ao museu, além da procedência lícita e autenticidade.

Recomendamos que, em doações feitas pelo artista (ou herdeiros titulares de direitos), já seja inclusa no documento uma cláusula de licenciamento de direitos autorais.

Ainda, é possível o ato de doação e troca, entre instituições, de uma obra por outra, o que alguns chamam de permuta (art. 533 do Código Civil).

 

LEGADO

Legado é a situação na qual uma pessoa destina obras de sua propriedade ao museu por testamento, podendo ou não ter certas restrições (arts. 1.912 e seguintes do Código Civil). O painel “Bodas de Caná” de Candido Portinari passou a integrar o acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro após ser destinada à instituição no testamento de Edméa San Tiago Dantas – cujo marido havia encomendado a obra ao artista em 1956.

Em linhas gerais, as obras legadas são incorporadas como resultado da execução judicial de herança, dado que, com a morte do legante, o legatário adquire apenas o domínio e a posse indireta, devendo requerer aos herdeiros a posse direta da obra. Nesse cenário, o testamento e a decisão de órgãos competentes consistem na documentação adequada.

 

PRODUÇÃO INTERNA

É cenário na qual obras são confeccionadas ou comissionadas pelo próprio museu e sua guarda é transferida para o acervo. O Museu de Imagens do Inconsciente, como exemplo, tem grande parte de seu acervo formado por obras produzidas em seus ateliês por pacientes psiquiátricos, enquanto o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no âmbito de seu Clube de Colecionadores, comissiona produções, que posteriormente passarão a fazer parte de sua coleção, a artistas consagrados. Enquadram-se aqui também aquelas obras do tipo site-specific, que são planejadas especialmente para uma determinada exposição ou ambiente do museu.

Neste cenário, será necessária documentação que comprove o comissionamento, geralmente um contrato de prestação de serviços com a pessoa que produzirá a obra.

 

GUARDA TEMPORÁRIA

Em certas situações, o museu compromete-se a guardar e cuidar de determinadas obras de propriedade de terceiros, inclusive podendo expô-las e restaurá-las, a depender da vontade da pessoa que as emprestou.

O principal instituto jurídico aplicável é o comodato, que consiste em empréstimo gratuito e por prazo determinado (arts. 579 a 585 do Código Civil). Nele, aquele que empresta não pode – salvo em hipótese de necessidade imprevista e urgente, reconhecida judicialmente – suspender o uso da obra pelo museu, e este fica obrigado a conservá-la, sem que possa cobrar do comodante as despesas feitas para tanto.

Para determinar as obrigações de cada parte e garantir a posse legítima da obra pelo museu, é imprescindível redigir um contrato de comodato. Se o objeto vier a ser incorporado em momento posterior, deve-se encerrar o comodato e iniciar o processo de compra ou doação.

Já no caso de as obras emprestadas pertencerem a instituições públicas, alguns chamam a transação de cessão de uso.

Ainda, há outra modalidade de guarda temporária, sob a denominação de depositário fiel (arts. 647 e seguintes do Código Civil e arts. 159 a 161 do Código de Processo Civil). Por força de lei, para cumprimento de uma obrigação legal ou por determinação de juiz, o museu pode ser compelido a guardar determinada obra, para fins de sua preservação e segurança. Nessa hipótese, a instituição pode vir a responder por eventuais perdas e danos, sendo que, na maioria dos casos, não estará autorizada a usar a obra depositada.

Exemplo dessa modalidade é o Museu Oscar Niemeyer, selecionado como fiel depositário e responsável pela guarda de cerca de 248 obras apreendidas na Operação Lava Jato.

 

Independentemente da modalidade, é indicado que, antes de concretizar o processo de entrada da obra, a área de acervo da instituição dedique-se à busca de documentos complementares – certificados, clipping, trocas de e-mails, históricos de exposições, referências bibliográficas, entre outros – que possam fornecer informações sobre a autenticidade e proveniência das obras a serem obtidas.

Assim que a obra for adquirida, deve-se estimar seu valor, por meio da avaliação de profissional especializado e reconhecido no mercado, e, na sequência, tombá-la no acervo, com a atribuição de número de identificação, bem como registrá-la como ativo na contabilidade da instituição.

Por fim, vale lembrar que quando um museu adquire uma obra, transfere-se a propriedade sobre o objeto em que ela se materializa (a tela de uma pintura, por exemplo). Dessa forma, o museu pode expô-la livremente, porém, não são transmitidos outros direitos autorais (art. 77 da Lei de Direitos Autorais).

Sendo assim, a equipe precisa entrar em contato com os titulares destes direitos – em geral, artistas ou seus herdeiros – a fim de solicitar autorizações para que o museu possa utilizar a imagem da obra em materiais institucionais e de divulgação, como catálogos, cartazes, vídeos e posts em redes sociais.

 

E SE NÃO TIVER DOCUMENTAÇÃO?

Apesar da importância de existir documentação organizada que comprove a origem das obras de um museu, sabe-se que, em virtude do tamanho e antiguidade de muitos acervos, tal requisito torna-se difícil de ser cumprido – ainda mais no atual cenário de pandemia da Covid-19, que dificulta o rastreamento, regularização e organização de documentos.

Há, sim, a possibilidade de aquisição da propriedade de obras de arte sem documentos ou se esses estiverem irregulares. De acordo com o instituto da usucapião de bens móveis (arts. 1.260 a 1.262 do Código Civil), as obras em posse da instituição há pelo menos 5 anos são de sua propriedade, independentemente de qualquer documentação ou comprovação de boa-fé.

Em regra, os museus possuem, guardam, conservam e expõem as obras sem qualquer objeção ou questionamento de terceiros. Tal posse contínua e incontestada pode ser demonstrada por meio de certa documentação acessória, tal como: apólices de seguro, catálogos de exposição, documentos relativos a empréstimos e autorizações de direitos autorais.[8]

Entretanto, apesar da possibilidade de comprovação da propriedade por usucapião, as instituições museológicas devem instituir como boas práticas a elaboração, assinatura e arquivo do documento aplicável à modalidade de entrada escolhida.

E, mais que uma prática aconselhada de gestão, a documentação museológica é uma forma de promoção e proteção do patrimônio cultural do país, tanto que a elaboração de inventários e registros são objeto de disposição na Constituição Federal (art. 26, § 1º).[9] A promulgação da Lei Federal nº 11.904 em 2009, mais conhecida como Estatuto de Museus, reforçou a obrigatoriedade de se “manter documentação sistematizada atualizada na forma de registros e inventários” (arts. 39 a 41).

Um histórico organizado de suas obras permite aos museus maior agilidade e eficácia em processos contábeis e de auditoria, em casos de restauração e até mesmo na orientação da curadoria, cujo intuito é divulgar o acervo à população por meio de exposições e ações educativas.

 

(Agradecemos às valiosas contribuições de Ana Luiza Maccari.)

 

Photo by Kerensa Pickett on Unsplash

 

[1] Para mais informações sobre o conceito de acervo, veja: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo14329/acervo-e-colecao. Acesso em: 22 abr. 2021.

[2] Quando falamos de documentos em papel (como cartas, certidões, atas, partituras, processos judiciais etc.), os técnicos do museu devem optar, segundo critérios estabelecidos, pelo tratamento documental que lhes darão: se da arquivologia ou da museologia.

[3] Qualquer objeto pode ser musealizado, bastando que se enquadre dentro da missão do museu e demais documentos norteadores, tais como políticas de aquisição e descarte, nas quais se estabelece, respectivamente, os critérios para a entrada e a saída de itens no acervo.

[4] Entende-se por museus “as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento”, conforme o art. 1º do Estatuto de Museus.

[5] Para saber mais sobre o processo de entrada de objetos, documentação e gestão de acervos, recomendamos o curso “Documentação de Acervo Museológico”, fornecido gratuitamente pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) em parceria com a Escola Nacional de Políticas Públicas (ENAP): https://sabermuseu.museus.gov.br/documentacao-acervo-museologico/. Acesso em: 21 abr. 2021.

[6] Os modelos citados dão enfoque à aquisição de obras de arte. Porém, a depender da natureza do item a ser incorporado ao acervo, podemos mencionar também a coleta, isto é, a retirada de um item de seu lugar de origem para estudo e preservação (por exemplo, uma coleção de insetos em um museu de história natural ou de ciências).

[7] De modo geral, o recibo serve tão somente para confirmar a quitação de um pagamento, enquanto a nota fiscal comprova que uma determinada mercadoria foi comercializada (e sua propriedade foi transferida) ou que serviços foram prestados. Nela, devem constar informações do vendedor e comprador para a apuração de tributos. Na dúvida, vale sempre consultar um profissional especializado.

[8] Para adquirir a propriedade de um bem móvel por usucapião, basta cumprir os requisitos da lei. Contudo, é possível que em algumas circunstâncias haja necessidade de ajuizar ação de usucapião, com o objetivo de se conseguir uma sentença declaratória – o que implicaria em custos adicionais para a instituição.

[9] Art. 216, § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Post relacionado