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O tráfico ilícito de bens culturais e a resposta do Direito

O tráfico ilícito de bens culturais é um problema bastante atual e afeta um grande número de países. Os casos que mais têm se destacado concernem de maneira geral o Oriente Médio, em especial o Iraque e a Síria. Esses dois países possuem bens arqueológicos de enorme valor e ao mesmo tempo encontram-se em situação de grave conflito armado. Normalmente esse tipo de situação, em que casos de saque e furto de bens culturais são bastante comuns, representa grandes possibilidades de lucro para o comércio ilícito. No entanto, o tráfico de bens culturais está longe de limitar-se a países em conflito, e alimenta-se entre outras coisas de escavações arqueológicas ilegais e roubo ou falsificação de obras de arte e objetos arqueológicos.

 

A ampla aceitação da comunidade internacional em relação à ilicitude das práticas de destruição e saque de obras de arte e bens culturais em geral remonta pelo menos às convenções de Haia resultantes das Conferências de Paz de 1899 e 1907, que trataram, respectivamente, das leis e dos costumes acerca da guerra terrestre e do bombardeamento naval em tempos de guerra. A estas seguiu-se, em 1954, portanto no período pós-Segunda Guerra, uma nova convenção de Haia, destinada especificamente à proteção de bens culturais em caso de conflito armado, e que previa o mecanismo da restituição de bens subtraídos de seus países e proprietários de origem. Tal mecanismo vinha sendo amplamente utilizado para casos de confisco e expropriação de obras de arte realizados pela Alemanha nazista.

 

A onda de independências de antigas colônias do período pós-guerra levou a que esses novos membros da Organização das Nações Unidas se inspirassem nas medidas legais para a promoção da restituição de propriedade cultural ocorridas na Europa no pós-guerra para pedir o retorno de itens que consideravam pertencer a seu patrimônio cultural e para deter o saque de bens culturais que ocorria nos seus territórios em função de sua relativa falta de recursos. Quanto a esse ponto, vale dizer que o mercado de arte e de antiguidades se desenvolveu de forma marcante naquele período, o que gerou uma forte demanda e deu continuidade, de certa maneira, ao movimento de saída de bens culturais de alguns países – muitos dos quais ex-colônias – em direção a um grupo específico de países – grande parte dos quais suas antigas metrópoles. Uma fatia desse mercado cada vez mais lucrativo passou a ser controlada por redes de crime organizado que foram especializando-se no tráfico internacional desses bens. Tudo isso ocorria em um contexto em que a proteção de bens culturais era vista como uma questão relativa principalmente a períodos de confronto bélico. A restituição de bens subtraídos em períodos de paz não era algo ainda amplamente aceito, tampouco consagrado pelo costume ou por convenções internacionais.

 

A partir de uma campanha liderada por aqueles países recém independentes, mas também com uma forte atuação dos países latino-americanos, o tema do tráfico ilícito e da restituição internacional de bens culturais tornou-se objeto de profundas deliberações no âmbito da UNESCO, solicitada a propor uma legislação internacional que fosse mais abrangente e eficaz do que a Convenção de Haia de 1954. Em 1970, foi, então, assinada em Paris a Convenção da UNESCO relativa às medidas a serem tomadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedade ilícitas de bens culturais. O texto dessa convenção encoraja os países signatários a elaborarem legislações nacionais mais duras e protetivas em relação aos bens culturais, além de prever a restituição de bens culturais roubados, ou ilicitamente exportados, a seus países de origem. Diante da persistência das dificuldades em se combater o tráfico ilegal de bens culturais, foram feitas novas demandas por uma legislação internacional sobre o tema. A Unidroit – Instituto para a Unificação do Direito Privado – foi instada pela própria UNESCO a redigir uma nova convenção, que entrou em vigor em 1995. Suas disposições eram ainda mais duras e tinham aplicação direta, e buscavam também resolver questões de Direito privado referentes ao tratamento dado a compradores de boa-fé por diferentes sistemas jurídicos. A convenção prevê a restituição independentemente das circunstâncias; ao comprador que conseguir provar que agiu diligentemente é facultada apenas a compensação pecuniária.

 

Essas duas convenções, portanto, servem de arcabouço jurídico para a solução de casos de restituição de bens culturais em nível internacional e de diretriz para as legislações nacionais sobre o tema. No entanto, como ocorre com a maior parte dos tratados, não são retroativas, o que impediria a resolução de conflitos acerca de propriedade cultural originados antes de sua entrada em vigor, para a insatisfação de antigas colônias e países que sofreram nos últimos séculos o saque em grande escala de obras artísticas e sítios arqueológicos em seu território. Para tais situações, foi criado o Comitê Intergovernamental pela Promoção do Retorno dos Bens Culturais aos seus Países de Origem ou sua Restituição em caso de Apropriação Ilícita (ICPRCP), a fim de lidar com casos fora do escopo da Convenção de 1970 – e, posteriormente, também da Convenção de 1995 -, encorajar negociações bilaterais e facilitar a cooperação para garantir o retorno de tesouros artísticos ou arqueológicos. Sua natureza é antes política do que legal, e isso se explica em grande medida pelo reconhecimento de que o repatriamento de bens culturais em muitos casos, principalmente naqueles que passaram a ser chamados “casos pré-1970”, dificilmente teria como ocorrer pela via judicial, mas antes pela negociação, ou por outros mecanismos de solução de controvérsias, como mediação e arbitragem.

 

Atualmente tem-se chamado muito a atenção para a ligação dos casos mais recentes de saque, destruição e tráfico de bens culturais em locais de conflito, como Iraque e Síria, com o financiamento do terrorismo. O Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, adotou uma série de resoluções nos últimos anos em que enfatiza tal ligação e insta os países a cooperarem entre si e adotarem medidas domésticas para combater o problema. Além disso, é sabido que a compra de bens culturais é um meio amplamente empregado para a lavagem de dinheiro oriundo de outras atividades ilícitas, como tráfico de drogas, armas ou corrupção. Vale ressaltar que, além de legislações nacionais e internacionais para combater o tráfico de bens culturais e os problemas que dele advêm, existem atualmente muitos “códigos de ética” criados por atores do mercado de arte e bens culturais, como associações de negociantes ou museus. Tais iniciativas, embora ainda em fase embrionária, buscam conscientizar e moralizar o mercado de arte, distinguindo as atitudes profissionais das não-profissionais. Embora sejam insuficientes, por não terem força de lei, podem ser um importante complemento à atuação dos Estados e das organizações internacionais.

 

 

* Esse texto apresenta alguns trechos de trabalho apresentado para a conclusão do MBA em Relações Internacionais na FGV-Rio.

 

Bibliografia:

FRIGO, Manlio. “Looted Art and Public International Law: General Principles and International Conventions.” In: GABUS, Pierre, RENOLD, Marc-André (eds.). Studies in Art Law: Claims for the Restitution of Looted Art. Genebra: Schulthess, 2004.

GERSTENBLITH, Patty. “The Cultural Interest in the Restitution of Cultural Objects”. Connecticut Journal of International Law, Primavera, 2001.

HERSHKOVITCH, Corinne, RYKNER, Didier. La restitution des oeuvres d’art. Solutions et impasses. Paris: Hazan, 2011.

KOWALSKI, Wojciech W. “Restitution of Works of Art pursuant to Private and Public International Law”. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, vol. 228. Leiden: Nijhoff, 2001.

PROTT, Lyndell. Witnesses to History: A Compendim of Documents and Writings on the Return of Cultural Objects. Paris: UNESCO, 2009.

 

Foto por Les Anderson. In: Unsplash.

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