Menu fechado

Direitos Culturais: uma categoria esquecida de direitos

Em setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções tomou conta do Museu Nacional na cidade do Rio de Janeiro, destruindo parcela significativa do acervo do local, numa tragédia que resultou num prejuízo imaterial inestimável para o país. O Estado Islâmico, grupo terrorista notório por suas execuções públicas, destruiu, ao longo de sua atuação, dezenas de monumentos históricos, dentre os quais citamos a cidade histórica de Hatra, construída entre os rios Eufrates e Tigre 300 a.C. Em janeiro deste ano, a obra “A Voz do Ralo é a Voz de Deus”, que reunia artistas semi-nuas com corpos envoltos em baratas de plástico, foi censurada pelo governo do estado do Rio de Janeiro. Em julho de 2018, a peça O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu, na qual Jesus é interpretado por uma travesti, foi censurada e impedida de ser apresentada num festival artístico. Em 2019, a gestão Bolsonaro extingue o Ministério da Cultura.

 

Os exemplos acima são apenas alguns dos inúmeros possíveis que servem para ilustrar a maneira como a cultura e as artes têm sido objeto de discussão na sociedade, tanto a nível global quanto nacional. A um tempo discute-se como preservar o patrimônio histórico cultural, ou até mesmo se deveríamos gastar dispendiosos esforços na preservação de “antiguidades”. Noutro tempo, discute-se o que seria arte e o que não seria, de forma a concluir quais manifestações deveriam ou não ter amparo da iniciativa privada e do Estado. Se a arte tem o potencial unificador de reunir pessoas em torno de uma obra ou ideia, é igualmente verdade que ela também possui a capacidade de criar divisões e desentendimentos dos mais diversos.

 

É nesta toada que se torna necessária uma discussão mais concreta sobre a natureza dos direitos culturais. Pensar a cultura e a arte enquanto um direito pode parecer, num primeiro momento, um esforço intelectual exagerado, mas são diversos os instrumentos jurídicos voltados à salvaguarda do direito de acesso a bens de natureza cultural e artística. Considerada por muitos como uma necessidade terciária, a cultura não seria merecedora do amparo estatal, que deveria, supostamente, estar mais preocupado em prover necessidades concretas, como saúde, educação, segurança, trabalho dentre outros.

 

Essa noção de que os direitos culturais são necessidades de segunda mão pode ser considerada a um mesmo tempo como uma causa e uma consequência. Causa da permanência e manutenção de um consenso pernicioso junto à sociedade de que as artes não são dignas de figurarem entre as preocupações legislativas e jurídicas e consequência de um sistema que há muito tempo, por negar uma educação minimamente digna, forma cidadãos sem senhorio sobre a sua formação.

 

Mas, afinal, o que seriam os direitos culturais e qual seria a sua importância face a governos cada vez mais atribulados frente a lista crescente de necessidades de seus administrados? O direito, enquanto técnica de regulação social, depende de conceitos bem definidos para que possa ser aplicado com o mínimo de segurança que a expectativa de seus destinatários exige e merece. Daí nasce o esforço teórico e doutrinário para que essa categoria de direitos seja melhor trabalhada.

 

Os direitos culturais foram negligenciados durante um bom tempo pelos teóricos e demais estudiosos das ciências jurídicas sob a alegação de que seria impossível conceituá-los pela própria infinidade de conceitos da palavra cultura. Não obstante, a Declaração Universal de Direitos Humanos já possuía em seu corpo direitos dessa natureza:

 

Artigo 22

Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.

Artigo 27
I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios.
II) Todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

 

Do artigo 27, podemos extrair alguns núcleos dignos de atenção: participar livremente da vida cultural, fruir as artes, participar do progresso científico e proteção de interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção. Numa primeira leitura, é interessante notar que dentre a tutela jurídica cultural, a DUDH[1] insere não somente o gozo das artes, mas do avanço científico, o que denota desde já a franca abrangência dessa categoria de direitos.

 

Os direitos culturais encontram uma previsão mais extensa no Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais – PIDESC que, em seu artigo 15[2], traz a seguinte disciplina:

 

  1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de:
  2. a) Participar da vida cultural;
  3. b) Desfrutar o processo cientifico e suas aplicações;
  4. c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção cientifica, literária ou artística de que seja autor.

  1. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurarem o pleno exercício deste direito deverão compreender as que são necessárias para assegurar a manutenção, o desenvolvimento e a difusão da ciência e da cultura.

3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa cientifica e à atividade criadora.

  1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.

 

Desse dispositivo, interessante notar, novamente, a inclusão da ciência dentre os bens de cultura. Do parágrafo 2 do artigo 15, podemos identificar três núcleos voltados à vinculação da atuação estatal. Compete ao Estado manter, desenvolver e difundir a cultura e a ciência.

 

Podemos citar ainda diversos instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos culturais. A lista a seguir não é exaustiva: Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, Pacto de São José da Costa Rica, Convenção sobre os Direitos da Criança, Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais e a Declaração de Friburgo. Interessante mencionar sobre esta última que se trata de uma iniciativa da sociedade civil, sendo fruto das discussões travadas pelo denominado Grupo de Friburgo que reuniu teóricos e estudiosos para se debruçar sobre as questões atinentes à política cultural.

 

Apesar da extensa normativa acerca dos direitos culturais, é somente na década de 1990 que há uma virada teórica na delimitação de seu conteúdo. Christian Courtis[3], na introdução do livro “Bens Culturais e Direitos Humanos”, aponta que os direitos de natureza cultural ganham novo fôlego após: a) a adoção do Comentário Geral n° 21[4]sobre o direito de participar da vida cultural pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU e b) a adoção do procedimento de indicação de perito independente na área dos direitos culturais pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

 

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi estabelecido pela resolução n° 1985/17 do Conselho Econômico e Social da ONU. Dentro de sua competência, está a adoção de comentários gerais destinados à clarificação dos deveres dos Estados-partes na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais. O Comitê já havia adotado comentários gerais sobre diversos assuntos, mas até então não havia dado a devida atenção aos direitos de natureza cultural.

 

O Comentário Geral n° 21 é composto das seguintes partes: I) introdução e premissas básicas; II) conteúdo normativo do artigo 15, parágrafo 1, do PIDESC; III) obrigações dos Estados-parte; IV) possíveis violações; V) implementação em nível nacional e VI) obrigações de agentes não estatais.

 

Dado o intuito introdutório deste estudo, não esgotaremos todas as matérias tratadas no comentário geral n° 21. Atentaremos para os pontos considerados essenciais à uma iniciação no assunto.

 

Quanto ao conteúdo normativo do direito de todos de participar da vida cultural, o comentário geral n° 21 o qualifica como uma liberdade, apontando que, para sua implementação enquanto liberdade que é, demanda dos Estados tanto uma atuação de caráter negativo quanto positivo: atuação negativa no sentido de se abster de adotar atos contrários ao usufruto desse direito pelos administrados e atuação positiva no sentido de implementar ações e medidas que possibilitem o gozo desse direito pelo maior número de pessoas.

 

O comentário destrincha ainda os verbetes que compõem o art. 15, §1°, a do PIDESC, esmiuçando o alcance dos termos “todos”, “vida cultural” e “participar”.

 

Por “todos”, entende-se os indivíduos que têm a possibilidade de usufruir de seus direitos culturais de forma individual, em associação com outros ou em comunidades e grupos. No tocante à “vida cultural”, o comentário aponta que para fins de implementação desses direitos, deve-se considerar cultura como abrangente dos modos de vida, linguagem, literatura oral e escrita, música, comunicação não-verbal, religiões e sistemas de crença, ritos e cerimônias, esportes e jogos, métodos de produção e tecnologia, ambientes naturais e artificiais, comida, vestuário e abrigo, artes, costumes e tradições. Por fim, quanto ao verbete “participar”, o comentário desdobra-o em três sentidos possíveis: o de participação, o de acesso e o de contribuição.

 

Conforme se depreende da redação do comentário geral n° 21, os direitos culturais abarcam não somente bens artísticos, mas modos de vida, tecnologia, crenças, esportes entre tantos outros bens que denotam a amplitude dessa categoria de direitos e a sua conexão com outros direitos.

 

Em relação ao perito independente em matéria de direitos culturais, cumpre apontar o seguinte: o Conselho de Direitos Humanos já havia adotado diversos procedimentos voltados para a salvaguarda dos diretos econômicos e sociais, mas até então permaneceram esquecidos os direitos culturais. Foi através da resolução n° 10/23 de 26 de março de 2009 que foi adotado o procedimento especial do perito independente em matéria de direitos culturais. Dentre as tarefas do perito independente estão as seguintes: preparar relatórios temáticos, com o objetivo de esclarecer e aumentar a conscientização acerca do conteúdo dos direitos e das obrigações estatais correlatas e fornecer exemplos de melhores práticas; realizar visitas aos países, a convite do Estado em causa, para permitir a observação direta dos direitos de seu mandato, reunir-se com as autoridades estatais competentes e com organizações da sociedade civil, e fazer as recomendações apropriadas; receber informações sobre alegações de violações dos direitos de seu mandato para possível ação de proteção.

 

O primeiro relatório do perito independente se debruça sobre o arcabouçou jurídico voltado aos direitos culturais. Uma vez que já foram indicados alguns dos tratados e convenções atinentes à matéria no início deste estudo, nos limitaremos até aqui.

 

Na doutrina, é salutar relembrar o ensinamento de José Afonso da Silva[5], para quem os direitos culturais se desdobram nas seguintes categorias: direito à criação cultural, direito de acesso às fontes da cultura nacional, direito de difusão da cultura, liberdade de formas de expressão cultural, liberdade de manifestações culturais, direito dever estatal de formação do patrimônio cultural e de proteção dos bens de cultura. Peter Haberle[6], por sua vez, indica os seguintes: liberdade de prática da ciência e da arte, liberdade de ensino, direito à instrução, liberdade para aprender, liberdade dos pais para educar sua prole, liberdade de ação das associações culturais, tutela da propriedade intelectual, alfabetização de adultos, participação na radiodifusão, proteção do patrimônio histórico-artístico e da natureza.

 

Patrice Meyer-Bisch [7], renomado pesquisador da área de direitos culturais, define os direitos culturais como os direitos de uma pessoa, isoladamente ou em conjunto, de escolher e expressar sua identidade, acessar referências culturais bem como os recursos necessários para o seu processo de identificação. Os direitos culturais constituem a capacidade de vincular o sujeito a outros, graças ao conhecimento realizado pelas pessoas e depositado em obras dentro dos ambientes em que ele evolui. Do conceito de Meyer-Bisch, consideramos salutar a menção do poder único que os bens de cultura têm de criar liames e laços entre os humanos, criando relações de afeto e empatia.

 

Ainda de acordo com esse teórico, os direitos culturais apresentam as seguintes características: não se tratam de necessidades terciárias, mas, antes, são as principais alavancas do desenvolvimento humano, porque protegem diretamente as capacidades íntimas e pessoais; dizem respeito à identidade, como um processo contínuo de reconhecimento e escolha de referências; permitem que a pessoa faça sua própria identidade e se vincule a outros, sendo, portanto, elementos de conexão humana; permitem a encruzilhada do conhecimento e o repasse de saberes.

 

Conforme se denota de todo o exposto, podemos concluir brevemente que os direitos culturais possuem farta abrangência, para tutelar não somente bens artísticos, mas modos de vida, sistemas de crença, ambientes naturais e artificiais, criações naturais e humanas, bens de ciência e tecnologia, dentre tantos outros bens. Concluímos ainda que, ao contrário do que dita o senso comum, os direitos culturais não se prestam a ser a “cereja do bolo”, tuteláveis somente quando os demais direitos humanos forem implementados. Os direitos culturais, até mesmo pela própria indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, constituem necessidades tão salutares quanto a segurança ou o trabalho, e atuam como potencializadores desses mesmos direitos. Daí a necessidade de se cobrar dos poderes constituídos uma atuação consciente nesse sentido, e de se conscientizar a sociedade civil acerca do mundo de possibilidades humanas que a cultura oferece.

 

 

[1]DUDH. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf;

[2]PIDESC. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm;

[3]COURTIS, Christian. Bens culturais e direitos humanos, sesc são paulo introdução, p 9-10;

[4]Relatório do perito independente na área de direitos culturais. Comentário geral n° 21;

[5]SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, são paulo, malheiros, 1993, p. 280;

[6]HABERLE, Peter. Le libertá fondamentali nello stato constituzionale, roma, la nuova italia scientifica, 1993, p. 211;

[7]BISCH, Patrice Meyer. Definir les droits culturels, disponível em https://droitsculturels.org/definir-les-droits-culturels/.

 

 

Foto por Stephanie Braconnier. In: Unsplash.

Post relacionado