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Teatro Oficina: tombamento e zoneamento urbano – Parte 2

Semana passada tratamos do histórico da disputa do Teatro Oficina. Agora, abordaremos um pouco do tombamento e da problemática sobre o entorno de bens protegidos.

 

O Procedimento de Tombamento

O processo de tombamento requerido pelo diretor é caracterizado, segundo art. 216 da Constituição Federal de 1988 e Decreto-lei 25/37[1], como um procedimento administrativo que prevê a intervenção do Estado em bem imóveis ou móveis, materiais ou imateriais, públicos ou privados com a finalidade de proteger o patrimônio cultural do país. De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o tombamento é forma de intervenção do Estado na propriedade privada, que tem por objetivo a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, assim considerado, pela legislação ordinária, o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.”

 

A competência para a proteção de bens, documentos e obras de valor histórico-cultural é comum para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, III, CF/88), enquanto a competência para legislar sobre a proteção de tais bens é concorrente entre União, Estados e Distrito Federal (art. 24, VII, CF/88), não tendo os Municípios competência legislativa sobre a matéria, podendo apenas promover a proteção dos bens de acordo com as legislações federais e estaduais (art. 30, IX, CF/88).

 

É, portanto, uma sucessão de atos preparatórios, que, ao final, culminam com a inscrição do bem no Livro do Tombo. As modalidades de tombamento previstas são: por procedimento (de ofício, com a notificação à entidade ou pessoa a qual pertence o bem; voluntário, quando o proprietário do bem requisita o procedimento; compulsório, por iniciativa do Poder Público mesmo sem anuência do proprietário), por eficácia (provisória, quando apenas recebe a notificação porém sem inscrição no registro de imóveis; definitiva, quando já possui inscrição do Livro do Tombo), e por destinatário (geral, quando atinge todos os bens situados no bairro/cidade; individual, quando incide em bem determinado), sendo que, em qualquer das modalidades citadas, é necessário manifestação do IPHAN.

 

Em caso de tombamento de bem público, de acordo com o art. 5º do Decreto-lei, o procedimento é de ofício e se processa através da manifestação do IPHAN e notificação simples da pessoa jurídica de direito público à que pertence o bem ou que possui a guarda, havendo, ao final, inscrição no Livro do Tombo. Já no caso de tombamento voluntário de bem particular, requerido pelo proprietário (artigos 6º e 7º), também é ouvido o órgão federal e, sendo preenchidos os requisitos necessários para o procedimento, há inscrição do bem no Livro do Tombo. Caso o bem tombado seja um imóvel é necessário, também, a transcrição desse no Registro de Imóveis, a fim de averbar o tombamento ao lado da transcrição do domínio (art. 13). Por fim, se o procedimento é compulsório por iniciativa do Poder Público, deve-se passar pelas seguintes fases (art. 9º): manifestação do órgão federal; notificação do proprietário para anuir ao tombamento ou oferecer impugnação no prazo de 15 dias (se concordar com o procedimento há tombamento voluntário e inscrição no Livro do tombo); caso haja impugnação há manifestação do órgão que tomou a iniciativa do tombamento pelo mesmo prazo, sendo o processo remetido ao IPHAN por 60 dias para análise; se a decisão do IPHAN for favorável ao órgão público é determinada a inscrição do bem no Livro, se for desfavorável, o processo é arquivado; a decisão do IPHAN, por sua vez, deve ser apreciada pelo Ministro da Cultura, que poderá revogar a decisão do órgão federal caso encontre alguma ilegalidade ou julgue o procedimento contrário ao interesse público; havendo homologação pelo Ministro há inscrição definitiva no Livro do Tombo.

 

Por fim, o Decreto-lei, em seu capítulo III, aponta os efeitos do tombamento para o proprietário do bem, seus vizinhos e para o próprio IPHAN. O órgão federal, de acordo com os artigos 19 e 20, deve inspecionar o bem tombado sempre que julgar conviniente e executar obras de conservação, caso o proprietário não o faça, providenciando sua desapropriação caso seja necessária. Deve, ainda, caso o bem tombado seja imóvel, providenciar a transcrição do tombamento no Registro de Imóveis. Para os vizinhos do bem tombado, há obrigações negativas, não podendo realizar construções que prejudiquem a visibilidade do bem ou colocar anúncios e cartazes, sob pena de multa (art. 18). Para o proprietário do bem tombado, há obrigações positivas, negativas e de suportar. Segundo art. 19, o proprietário deve realizar obras de conservação necessárias à preservação do bem e, se não tiver os meios para tanto, comunicar o órgão federal, sob pena de multa; não deve destruir, demolir ou mutilar o bem tombado, nem pintá-lo ou restaurá-lo sem prévia autorização do IPHAN, também sob pena de multa (art. 17) e , tratando-se de bem móvel, n˜åo pode retirá-lo do país (de acordo com o art. 14, há autorização apenas para intercâmbio cultural e com previa autorização do órgão federal).

 

A Problemática do Entorno

Como a proteção clara do entorno do Oficina não é legalmente determinada, a Sisan vem apresentando diversos projetos de construção de prédios residenciais e comerciais no bairro. Em outubro deste ano, o Condephaat apresentou decisão desfavorável à construção das torres pelo Grupo, argumentando que essas atentam contra a visibilidade e destaque do Oficina, indo contra a preservação de outros bens tombados como do próprio Bixiga, visto que a construção dos prédios não possui articulação com seu entorno, é alheia ao bairro em que se insere e à sua dinâmica sócio-cultural.

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De acordo com o Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014[2], o terreno em que se localiza o Oficina é caracterizado como um Setor Central da Macroárea de Estruturação Metropolitana. Esses setores têm como objetivos principais a preservação do patrimônio histórico cultural, a valorização de áreas de patrimônio, a recuperação de imóveis históricos e a preservação e uso da área central, no entanto, de acordo com o PDE, são necessário instrumentos para regulamentar a situação dos bens discutidos. Para isso foi proposto no Plano a revisão das ZEPECs (Zona Especial de Preservação Cultural) e a criação de TICPs (Território de Interesse de Cultura e Paisagens), para uma melhor preservação dos bens culturais.

 

De acordo com o art. 61 e seguintes do PDE de 2014, as ZEPECs são “porções do território destinadas à preservação, valorização e salvaguarda dos bens de valor histórico, artístico, arquitetônico arqueológico e paisagístico, podendo se configurar como elementos construídos, edificações e sua respectivas áreas ou lotes; conjuntos arquitetônicos, sítios urbanos ou rurais; sítios arqueológicos, áreas indígenas, espaços públicos; templos religiosos, elementos paisagísticos; conjuntos urbanos, espaços e estruturas que dão suporte ao patrimônio imaterial e/ou a usos de valor socialmente atribuído”. Essas zonas tem como objetivo a preservação e valorização das áreas, imóveis e bairros de interesse cultural na cidade, sendo divididas em quatro categorias: Bens Imóveis Representativos (BIR), Áreas de Urbanização Especial (AUE), Áreas de Proteção Paisagística (APP) e Áreas de Proteção Cultural.

 

O PDE/2014 ainda instituiu as TICPs, que, segundo art. 314 e seguintes, são “áreas que concentram grande números de espaços, atividades ou instituições culturais, assim como elementos urbanos materiais, materiais e de paisagem significativos para a memória e identidade da cidade, formando polos singulares de atratividade social, cultural e turística de interesse para a cidadania cultural e o desenvolvimento sustentável, cuja longevidade e vitalidade dependem de funções articuladas do Poder Público.” Os objetivos desses territórios seriam estimular as iniciativas locais nos âmbitos cultural, educacional e ambiental, ampliar a abrangência de direitos sociais, valorizar a memória e identidade da cidade, entre outros. O PDE determinou no §4º do referido artigo que as TICPs deverão ser criadas através de leis especificas ou de Planos Regionais, levando em conta a participação democrática da população em sua formulação, porem, nos parágrafos 2º e 3º, já ficam instituídos  previamente dois territórios: o TICP Paulista/Luz e o Jaraguá/Perus.

ISA 2
Necessário notar que o edifício em que se encontra o teatro Oficina é definido como uma ZEPEC-BIR, ou seja é um edifício com valor histórico e cultural para a comunidade, no entanto, o edifício junto com seu entorno é classificado como TICP, mais especificamente dentro do perímetro Paulista/Luz, posto que seu território é uma área de importância simbólica para a memória e uso da cidade.

 

Ainda, de acordo com a nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei n. 16.402/16)[3], aprovada em Março deste ano, foram instituídas em São Paulo as Zonas de Ocupação Especial (ZOE), que segundo seu artigo 15º , “são porções de território que, por suas caraterísticas específicas, necessitam de disciplina especial de parcelamento, uso e ocupação”, cujos perímetros devem ser adequados às suas especificidades e definidos por Projeto de Intervenção Urbana (PIU), o qual deve ser aprovado por decreto, observando os parâmetros de macroárea estabelecidos no PDE. Os PIUs, segundo a Prefeitura de São Paulo[4], são estudos técnicos que promovem a restruturação urbana de áreas subtilizadas, a fim de aumentar seu potencial econômico e densidade demográfica, utilizando, para isso, as premissas de intervenção urbana instituídas pelo PDE. Como as atividades específicas das ZOEs incluem ocupação do solo para áreas de lazer, o terreno em que se localiza o teatro Oficina está incluído nessas zonas de ocupação e poderia se sujeitar a um PIU elaborado de acordo com o interesse público, porém, há um projeto anterior à nova Lei de Ocupação para a área, portanto os proprietários do terreno podem negar-se, apoiados em seu direito de protocolo (aplicação da lei vigente quando da entrada do processo), a seguir com um novo projeto de intervenção.

 

Com a decisão negativa do Condephaat, notamos que há uma mudança positiva no posicionamento do órgão em relação a discussões patrimoniais tradicionais, levando em conta as questões de preservação da memória do bairro e a manutenção de sua ambiência, além de destacar o interesse coletivo em detrimento da especulação imobiliária. Embora hajam diversos instrumentos de proteção ao patrimônio histórico cultural, não se chegou a um consenso sobre o dilema entre Zé Celso e o Grupo Silvio Santos posto que não possui, ainda, um resultado definitivo. Atualmente, o projeto de construção de torres pela Sisan aguarda decisão definitiva do Conselho.

 

Clique aqui para a primeira parte do artigo: http://institutodea.com/artigo/teatro-oficina-tombamento-e-zoneamento-urbano-parte-1/

 

BIBLIOGRAFIA

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25º ed., São Paulo, Atlas, 2012.

SANTORO, Paula Freire. As novas siglas de cultura no recém-aprovado Plano Diretor. 2014. Disponível em: <https://observasp.wordpress.com/2014/11/19/as-novas-siglas-da-cultura-no-recem-aprovado-plano-diretor/>. Acesso em Dezembro de 2016.

VANUCCHI, Luanda Villas Boas. Teatro Oficina e Bexiga: questões de patrimônio, questões de cidade. 2016. Disponível em: <https://observasp.wordpress.com/2016/10/13/teatro-oficina-e-bixiga-questoes-de-patrimonio-questoes-de-cidade/>. Acesso em Novembro de 2016.

MACHADO, Rogério Marcondes. Teatro Oficina: patrimonio e teatro. 2016. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.188/5905>. Acesso em: Novembro de 2016.

 

[1] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0025.htm>. Acesso em Dezembro de 2016.

[2] Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/2014-07-31_-_lei_16050_-_plano_diretor_estratgico_1428507821.pdf.> Acesso em: Dezembro de 2016.

[3] Disponível em: <http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/03/PL-272-15-com-razões-de-veto1.pdf>. Acesso em Dezembro de 2016.

[4] Disponível em: <http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/rede-de-estruturacao/piu/>. Acesso em Dezembro de 2016.

 

Foto em Destaque: José Celso Martinez Corrêa. Photo by Garapa – Coletivo Multimídia. In: Wikimedia Commons.

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