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Desenvolvendo jogos de tabuleiro e carta: quais conteúdos de terceiros posso usar?

Semana passada fizemos uma breve introdução sobre os cuidados que desenvolvedores devem ter com os direitos autorais de parceiros e colaboradores. Hoje, queremos falar um pouco das possibilidades de uso de conteúdos de terceiro.

Os chamados direitos de propriedade intelectual garantem a exclusividade de uso dos bens intangíveis criados por seus respectivos autores, inventores e demais titulares de direito. Isso significa que nenhum terceiro pode usá-los sem antes obter a prévia e expressa autorização desse “proprietário”. Para ilustrar o assunto, basta fazer um comparativo com sua casa. Qualquer pessoa pode entrar e começar a usar o seu imóvel sem autorização? A lógica é semelhante. Por isso costuma-se de dizer que o titular dos direitos de propriedade intelectual tem um “monopólio” sobre seu bem.

É claro que essa exclusividade não é absoluta. O próprio Direito busca equalizar e equilibrar o interesse dos titulares com o da sociedade, permitindo assim que seja possível acessar certos conteúdos em prol do desenvolvimento econômico e cultural. Trataremos nesse artigo especificamente das possibilidades de uso de obras de terceiro de acordo com as normas de Direito Autoral (um dos campos da propriedade intelectual). Deixaremos para outra ocasião, portanto, o caso da propriedade industrial (marcas, patentes, desenho industrial etc.) e Direito de Imagem.

O Direito Autoral protege as obras intelectuais (literárias, artísticas ou científicas), que sejam expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível (artigo 7º, da Lei n.º 9.610/98). São exemplos de obras protegidas as pinturas, músicas, textos de dramaturgia, esculturas, os filmes, entre outras. No Brasil, essa proteção do autor se divide em duas vertentes, uma patrimonial, que lhe garante o direito exclusivo de usar, fruir e dispor da obra, e outra moral, que tutela a relação subjetiva e personalíssima do autor com sua obra, por exemplo, a garantia do crédito.

Logo, os direitos autorais seguem a regra geral de que ninguém pode utilizar, modificar e explorar as obras do autor sem sua prévia e expressa autorização. Ou ainda, de acordo com o texto da legislação: “depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades” (artigo 29, da Lei n.º 9.610/98). Vejamos, porém, quais são as principais exceções a esse comando legal:

  1. Bens não protegidos por Direitos Autorais:  Nem todas as “criações” são protegidas pelo Direito. A legislação exclui expressamente, por exemplo, as “as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais” e “os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios” (artigo 8º). Isso ocorre justamente para permitir que certos bens comuns possam continuar alimentando novas criações e o desenvolvimento cultural da sociedade. Assim, o desenvolvedor pode se aproveitar das ideias, temas, assuntos e até de regras previstas em outros jogos em seus próprios projetos. Todavia, como o Direito não é uma ciência exata – com preto no branco – sempre deve-se ter um cuidado se esse uso não irá violar algum elemento criativo que seja protegido como um lugar ou um personagem.
  2. Obras em domínio público: No Brasil, as obras são protegidas pelo Direito Autoral por 70 anos após a morte do autor (na maioria dos casos) ou por 70 anos da sua divulgação (quando se trata de obras audiovisuais ou fotografias). Após esse prazo, diz-se que a obra cai em “domínio público”, podendo ser utilizada por qualquer um. Também caem em domínio público as obras de autores falecidos que não tenham deixado sucessores ou de autores desconhecidos. O domínio público faz com que a proteção dos direitos patrimonais deixe de existir. Os direitos morais, entretanto, continuam vigentes, de modo que o desenvolvedor não poderia, por exemplo, reivindicar para si a autoria de uma obra só porque ela está em domínio público.
  3. Creative Commons: As licenças em Creative Commons permitem a utilização gratuita de obras protegidas pelo direito autoral. Todavia, o desenvolvedor deve se atentar para o fato de que as licenças Creative Commons se subdividem em diversas categorias, com condições específicas para o seu uso livre e gratuito. O licenciante pode estabelecer, por exemplo, que o uso de sua obra é livre, desde que a nova criação dela derivada ou que a aproveite também seja colocada em Creative Commons. Isso prejudicaria a eventual exploração econômica do jogo.
  4. Uso de pequenos trechos: A Lei de Direitos Autorais prevê que não configura violação de direitos “a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores” (artigo 46, inciso VIII). Muitos autores comparam essa previsão ao chamado fair use (“uso justo”), do Copyright anglo-saxão, que também permite a utilização de pequenos trechos em certas condições especiais. A grande dificuldade nesse caso é saber qual porção da obra pode ser considerada pequeno trecho e quando aquele uso não prejudica o interesse legítimo dos titulares. Nós publicamos uma revista inteira sobre o assunto: confira neste link se quiser se aprofundar sobre o tema.
  5. Paródias: A legislação também considera livre as paródias “que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito“. As paródias pressupõem o uso de obras ou elementos criativos de terceiros com um tom humorístico, via de regra, para fins de crítica e reflexão. Porém, como já mencionamos anteriormente, nem sempre será tão claro quando estamos tratando de uma referência legítima para fins de paródia ou de mera transformação pontual da obra original para não se obter a autorização dos titulares.

Ainda sobre esse assunto, devemos trazer 3 observações importantes:

  1. Obras estrangeiras: Segundo o artigo 2º da Lei n.º 9.610/98, “os estrangeiros domiciliados no exterior gozarão da proteção assegurada nos acordos, convenções e tratados em vigor no Brasil“. Assim, as obras estrangeiras também gozam de proteção em território nacional. A análise que advogados fazem do risco de uso de obras estrangeiras, contudo, considera não apenas a legislação brasileira, como os tratados internacionais e as legislações do próprio país onde se originou a referida obra.
  2. Obras na internet: As obras disponibilizadas na internet não estão necessariamente em domínio público ou em Creative Commons (ou qualquer outra licença aberta). O titular de um direito pode se opor à utilização mesmo nos casos em que a obra já tenha circulado amplamente na internet durante muito tempo. Portanto, cuidado ao usar conteúdos da rede, mesmo aqueles que parecem anônimos.
  3. Concorrência desleal: O desenvolvedor pode acabar se “inspirando” em muitos elementos de algum jogo que admire ou seja fã durante seu processo de idealização. Mesmo no caso em que ele não viole nenhum direito autoral especificamente, pode acabar cometendo concorrência desleal. Em termos bastante simplificados, a concorrência desleal pode acontecer quando um agente pode tentar desviar clientela de outro jogo/desenvolvedor através da imitação ou de outros subterfúgios que possam levar à confusão do consumidor.

O uso não autorizado de obras protegidas pelo direito autoral pode levar à indenizações e retirada de circulação do jogo, além de outras possíveis sanções. Vale lembrar que a violação do Direito Autoral pode ocorrer mesmo antes da exploração comercial do produto em si, ainda na fase de prototipagem e testes. Desse modo, é importante que o ímpeto criativo não atropele os cuidados jurídicos com a regularização do jogo. Vamos tomar cuidado com todos os manuais de regras, até as de Direito.

 

Foto por Clint Bustrillos. In: Unsplash. 

 

 

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