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Como foi Oficina de Legalização para Artistas da Fundação Amazonas Sustentável

Nesta última semana, nos dias 25 e 27 de junho, a Fundação Amazonas Sutentável – FAS realizou uma oficina de legalização para artistas na qual foram discutidos aspectos jurídicos afetos ao fazer artístico. Foram convidados para ministrar a oficina Renato Saraiva de Moraes, advogado de formação e Jaqueline de Freitas Figueiredo, psicóloga de formação, professora de psicologia da Uninassau em Manaus e ex-conselheira municipal de cultura do Município de Manaus. A oficina contou com público do mais variado, entre artistas plásticos, musicistas, Djs, escritores, palhaços, cineastas, professores, estudantes e curiosos sobre o fazer cultural na capital amazonense.

 

A Fundação Amazonas Sustentável tem sede em Manaus, no bairro Parque Dez de Novembro, e já se assentou como uma entidade única na vida cultural da cidade. Há anos promove a Feira da FAS e a Virada Sustentável, nas quais empreendedores locais e artistas podem mostrar ao público o fruto do seu trabalho. Além de servir de vitrine da produção sustentável e cultural local, a FAS também realiza trabalhos no interior do Amazonas junto a comunidades ribeirinhas, fomentando o desenvolvimento local de forma sustentável e a melhoria nos índices de desenvolvimento humano.

 

No primeiro dia de oficina, o convidado Renato Saraiva abordou de forma introdutória alguns aspectos jurídicos afetos à produção cultural. Dentre eles, a diferença entre as personalidades física e jurídica e de que maneira cada uma delas é tributada, de forma a possibilitar que o agente cultural analise qual destas duas formas melhor atende aos seus interesses gerenciais e financeiros. Abordou ainda os diferentes modelos societários das pessoas jurídicas com e sem fins lucrativos, passando pelos conceitos de empresa, consórcio, cooperativas, institutos e fundações dentre outros.

 

Por sua vez, Jaqueline abordou a Lei Local de Incentivo à Cultura, lei municipal n° 2.213/17, posteriormente regulamentada pelo decreto municipal n°4096 de junho de 2018. A Lei Manauara de Incentivo apresenta muitos desafios e dúvidas aos agentes culturais da cidade uma vez que, de acordo com a própria Jacqueline, o seu pouco tempo de vigência e redação não didática acabam por confundir os proponentes.

 

A Lei Municipal n° 2.213/17, conforme dita seu artigo 4°, vigorará pelo prazo de dez anos, após o qual perderá vigência, a menos que seja renovada pelo Legislativo manauara ou que outra lei entre em seu lugar. A referida lei utiliza o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) como instrumento a viabilizar o fomento ao fazer cultural local. De acordo com o já mencionado artigo 4°, o incentivo limitar-se-á a 20% do valor recolhido pelo prestador de serviço estabelecido em Manaus.

 

Durante sua fala, Jaqueline aponta que uma das principais dificuldades dos proponentes são os preenchimentos dos anexos da lei, onde o agente cultural detalhará questões relativas ao orçamento e execução do projeto, o que acaba por dificultar eventual o processo de aprovação, devido as diversas diligências, do mesmo pelo Conselho Municipal de Cultura – Concultura, órgão responsável pela análise das propostas.

 

Alguns dos pontos interessantes em relação à lei manauara de incentivo é que no artigo 19 do decreto que a regulamente consta o rol das manifestações culturais que podem se valer da captação de recursos via lei de incentivo. Ao longo de 21 incisos, o decreto menciona quais manifestações culturais estão autorizadas a se valer do incentivo. De acordo com Jaqueline, a listagem taxativa tem grande risco de gerar injustiças, uma vez que o conceito de manifestação cultural não é um conceito jurídico, o que poderia fazer com que manifestações não incluídas naquele rol acabassem por ficar marginalizadas.

 

Nesse ponto, há uma brecha no último inciso do artigo 19 do decreto, no qual consta que poderão se valer do incentivo outras manifestações culturais “classificadas” pelo órgão competente”. Veja-se, portanto, que há abertura para outras manifestações não abrangidas pelo decreto, mas este, ainda assim, exige que estas sejam classificadas por órgão competente para tanto.

 

Num segundo momento, é interessante apontar que de acordo com os arts. 24 e 25 do decreto o proponente terá o prazo de seis meses para captação dos recursos. O projeto só poderá ser realizado com a captação integral dos recursos solicitados pelo proponente. Caso este não consiga toda a verba necessária, deverá devolver aos cofres públicos aquilo que tiver conseguido arrecadar.

 

Este, a nosso ver, é um dos pontos mais polêmicos da lei manauara de incentivo. É sabido que a aprovação de um projeto cultural pelo Estado, por si só, já é uma etapa difícil de ser vencida. Submeter o projeto à exigência de captação integral dos recursos que foram autorizados equivale a obstaculizar o espírito próprio de qualquer medida pública de incentivo à cultura. Primeiro, porque tal exigência não se afigura razoável. Segundo, porque nem todo prestador de serviço que recolha o ISS terá interesse na referida benesse, a despeito da redução no montante tributário que terá de pagar.

 

Por último, registre-se que, de acordo com Jaqueline Figueiredo, os projetos incentivados pela lei manauara tem a obrigatoriedade de serem 100% gratuitos, sendo vedada a cobrança de ingressos ou venda de material durante a realização do projeto. Por exemplo, suponha que uma banda tenha um show autorizado e incentivado pela referida lei. Durante seu show, a referida banda não poderá vender exemplares de seu disco, sendo autorizado apenas a distribuição gratuita do mesmo para a população. Além disso, caso o proponente queira utilizar parte dos recursos autorizados e captados para compra de material, como microfones ou figurino, após a realização do projeto, o material deverá ser devolvido para o Concultura.

 

Neste ponto, merece também crítica a lei municipal. A exigência de tantas contrapartidas por parte do agente cultural acaba por aniquilar o sentido de “incentivo à cultura.” Impedir a cobrança de ingressos, venda de material físico ou a aquisição permanente de material acaba por fazer com que o agente cultural trabalhe praticamente de graça. É certo que o fomento à cultura é de interesse da população que consome arte e merece acessá-la, mas a submissão do agente cultural às exigências aqui mencionadas acaba por mitigar sua autonomia, fazendo com que o mesmo dependa enormemente do aparato estatal para a consecução de seus projetos.

 

A medida, apesar das imperfeições que permeiam sua redação e, consequentemente, sua exequibilidade, é de extrema importância para a capital e a cultura amazonense. O Estado do Amazonas é indubitavelmente detentor de uma das culturas mais ricas e peculiares do nosso país, servindo de abrigo para manifestações mundialmente reconhecidas, como o festival folclórico de Parintins, que atrai turistas não apenas do Brasil mas do mundo todo ano após ano e, é claro, o grandioso Teatro Amazonas em frente ao Largo São Sebastião, patrimônio inestimável de nossa cultura que já recebeu artistas dos mais variados quilates e estilos. Além disso, tenha-se em mente a herança indígena que ajudou a formar a cultura regional, influenciando até hoje os modos de falar e a culinária local.

 

Registre-se, ainda, que a lei manauara de incentivo à cultura, juntamente com o Sistema Municipal de Fomento à Cultura (Siscult) instituído pela lei nº 2.214, de 04 de abril de 2017, dão concretude às normas constitucionais que tutelam à cultura, mormente o parágrafo 4° do art. 216-A, segundo o qual Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias.

 

A Oficina de Legalização culminou, na quinta-feira, com uma roda de conversa no auditório da Fundação Amazonas Sustentável, onde os palestrantes e convidados puderam trocar experiências e impressões sobre as relações entre cultura e sustentabilidade e quais seriam os desafios e oportunidades para o ano de 2019.

 

O ponto de partida da conversa foi um marco temporal: a extinção do Ministério da Cultura pela gestão Bolsonaro e a incorporação da pasta da cultura ao Ministério da Cidadania, o que importou numa redução significativa da estrutura administrativa voltada à cultura.

 

Dentre os desafios apontados, foram mencionados a intolerância generalizada em tempos de extrema polarização política e social, o caos do cenário institucional nacional e internacional, a aparente conectividade entre os cidadãos que se contrapõe a um isolamento cada vez maior das pessoas entre si, a dificuldade de manutenção do diálogo de maneira civilizada e ainda a vilanização da arte e dos artistas, considerados por muitos como imorais ou corruptos.

 

Foi interessante notar que, a despeito do título de “Cultura e Sustentabilidade”, a roda de conversa transitou muito sobre a questão da intolerância e a dificuldade de diálogo entre cidadãos e diversos setores da sociedade. Nada mais salutar e adequado, uma vez que muitas, senão todas as questões, são influenciadas por nossa habilidade de manter a comunicação sobretudo com quem pensa diferente de nós. Essa dificuldade contemporânea repercute diretamente nos temas de cultura e sustentabilidade. Cite-se, como exemplo, as diferentes opiniões da sociedade acerca do que é ou deveria ser arte em face a episódios polêmicos como a interação de uma criança com um artista nu no Museu de Arte Moderna de São Paulo, ou ainda as dificuldades de manutenção do consenso global sobre temas já assentados pela ciência como o aquecimento global ou a poluição do meio ambiente.

 

No que tange ao diálogo e os desafios que este representa, Renato Saraiva menciona a técnica da Comunicação Não Violenta (Non Violent Communication – NVC) elaborada por Marshal Rosenberg, mencionando dois pontos simples à inserção dessa técnica em nossa prática diária: não evitar os conflitos, caso estes ocorram e trocar o “você” por “eu” ou “nós” durante a fala, de forma a retirar a tensão do interlocutor e trazê-la para quem fala.

 

Como oportunidades do período difícil vivenciado pela população brasileira, foram mencionados a possibilidade de aprendizado em tempos difíceis e a construção de redes e vínculos entre os cidadãos.

 

Iniciativas como a da FAS são salutares e muito nobres, pois possibilitam a democratização do conhecimento jurídico, sobretudo em relação a agentes com pouca instrução acerca da burocracia envolvida no fazer cultural. Em nossa opinião, são tempos em que a união é necessária, e aqueles que possuem acesso ao conhecimento e saibam manuseá-lo tem um dever cívico com aqueles que, por algum motivo, não possam fazer o mesmo. Para citar Karl Popper, “todo intelectual tem uma responsabilidade muito especial. Tem o privilégio e a oportunidade de estudar. Em troca, deve apresentar a seus congêneres (ou à ‘sociedade’) os resultados de seu estudo o mais simples, claro e modestamente que possa. O pior que podem fazer os intelectuais – o pecado cardeal – é intentar estabelecer-se como grandes profetas em relação aos seus congêneres e impressionar-lhes com filosofias desconcertantes. Qualquer um que não saiba falar de forma simples e com clareza não deveria dizer nada e continuar trabalhando até que possa fazê-lo.”

 

 

Karl Popper, En Busca de un mundo mejor, p 114, citado por José Renato Nalini, Ética Geral e Profissional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p 64.

 

 

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