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Prefeituras x Lei Rouanet: organizando o debate

“Do jeito que nós vai indo
Com as coisa tudo subindo
Eu num sei como há de ser
Pra falar a verdade, moço
Essa vida tá um osso
Bem duro da gente roer
Sobe arroz, sobe o feijão,
A batata e o macarrão
Dum jeito que não se atura
Tudo sobe inté a taxa
No entanto só o que baixa
Defunto na sepultura

[…]

Se recorre à greve, então
Veja a compensação
Baixa logo o cassetete

[…]

Engraçado no Brasil
Fartando tudo aos mil
O que não farta é política
Mas querem saber de uma
Queixa num dianta nenhuma
Num dianta fazer futrica
Mió ditado escuitá
É bom deixa como está
Pra ver como é que fica” – sertanejo “Tudo tá subindo”, por Alvarenga e Ranchinho

Guardo na memória a imagem de meu falecido avô enrolando um cigarro de palha e ouvindo Alvarenga e Ranchinho. Agricultor de Minas Gerais e como muitos de seu tempo, gostava das antigas modas de violas e duplas sertanejas. Também me recordo que ele já não acompanhava os artistas mais novos do gênero. De fato, o sertanejo mudou muito com o tempo – quer dizer, ao menos aquele que ganhou destaque midiático e alcance de massa. Tornou-se urbano, cosmopolita e, com certeza, mais organizado economicamente.

Hoje, empresas planejam e gerenciam cuidadosamente as carreiras dos artistas. Captam investimentos em outros setores da economia (como o agronegócio) e alavancam sua capacidade de rentabilização na indústria do entretenimento. O resultado: o sertanejo ocupa o topo disparado das paradas de sucesso no país e consolida-se como um negócio lucrativo.

Na última semana, o setor foi envolvido em polêmicas sobre os custos de shows pagos por prefeituras. Isso trouxe uma série de discussões sobre o financiamento público à cultura, inclusive, sobre a pertinência ou não da Lei Rouanet para esse tipo de evento. Neste texto, queremos oferecer algumas perguntas que possam ajudar a qualificar e organizar esse debate.

O Estado deve financiar a cultura?

Dos antigos impérios às repúblicas contemporâneas, todos os Estados financiaram de alguma forma a cultura. Aliás, a palavra “mecenas“, utilizada para designar aquele que apoia a cultura, vem do diplomata e estadista romano Caio Mecenas, que se notorizou como patrono das artes do seu tempo.

Para refletirmos a importância do financiamento público, precisamos lembrar que a cultura não se resume aos bens culturais como música, livros e filmes. A cultura também pode ser entendida como o conjunto de diversas características imateriais e intangíveis de uma sociedade: formas de criar, fazer e viver; referências simbólicas; hábitos e comportamentos; valores culturais, entre outros.

Se adotarmos esse conceito mais aberto, podemos dizer que a cultura é importante por diversos motivos, tais como: (1) desenvolvimento intelectual e criativo dos indivíduos; (2) transmissão de diversos tipos de conhecimento e valores entre gerações; (3) preservação da memória e do patrimônio cultural; (4) fortalecimento dos laços de solidariedade, bem como da tolerância e empatia entre os membros da sociedade; (5) estímulo ao turismo; (6) melhoria da saúde mental e física; (7) promover a autonomia de valores e de pensamento da população, sobretudo considerando as influências e interesses externos; (8) promover evoluções nos hábitos das comunidades; (9) incentivar um setor dinâmico economicamente, com alta capacidade de geração de empregos e renda, recolhimento de tributos, e baixo impacto ambiental. Qualquer uma dessas abordagens oferece um enorme e interessante campo de pesquisa – mas não aprofundaremos o assunto no momento.

A despeito dessa importância da cultura, a iniciativa privada não é suficiente para satisfazer todas as necessidades culturais dos indivíduos e da coletividade. Por exemplo, se os agentes do mercado sempre buscarão otimizar seus lucros, pode ser que garantir o acesso à cultura em periferias não seja uma prioridade ou interessante para o empresário. Logo, o Estado tem que atuar para garantir o desenvolvimento e o bem-estar cultural de todos.

O gasto com cultura compete com saúde e educação?

O orçamento público é limitado. Logo, todos os gastos são objeto de disputas políticas e econômicas e devem passar por análise de prioridades pelos gestores públicos. Nesse sentido, a cultura disputa sim recursos com a saúde e educação – mas essa é uma simplificação rasa da discussão.

Em primeiro lugar, a cultura também é um investimento que repercute na saúde dos indivíduos, como demonstram diversas pesquisas e como ficou bastante evidente durante a pandemia do COVID-19, além de fazer parte de uma formação educacional mais completa e moderna. Aliás, vale citar uma curiosidade histórica: os primeiros órgãos públicos de cultura criados por Getúlio Vargas estavam submetidos justamente à pasta da Saúde.

Além disso, a cultura ocupa um lugar muito pequeno no orçamento federal, estadual e municipal, não chegando a 1% dos gastos públicos. Não são os cortes de cultura que irão resolver as filas em hospitais ou o sucateamento das escolas. O debate sobre a racionalidade dos gastos públicos deveria se pautar em uma análise qualitativa geral do orçamento. O discurso de redução do orçamento da cultura em prol da saúde ou educação costuma ter um tom moralista e muito pouco crítico à realidade orçamentária brasileira.

Finalmente, os investimentos em cultura possuem uma grande capacidade de mobilizar novos gastos na economia. Por exemplo, quando alguém vai a um festival de música, é comum que gaste com hospedagem, transporte, alimentação, souvenires, entre outros, o que ajuda a movimentar o comércio local. Isso é chamado pelos economistas de efeito multiplicador, ou seja, o potencial de gerar novos investimentos a partir do aporte realizado. Evidentemente, tudo isso também tem um impacto na arrecadação tributária, gerando novas receitas ao Poder Público.

As prefeituras deveriam gastar com cultura?

As prefeituras obrigatoriamente devem contribuir com o financiamento da cultura – por força dos artigos 215 e seguintes da Constituição. É evidente que cada municipalidade deve adotar suas próprias políticas culturais a partir das demandas e necessidades locais, bem como de sua disponibilidade orçamentária.

Os gastos com shows e outras formas de programação são apenas um dos possíveis aportes. A grande vantagem desse tipo de evento é permitir que uma parcela grande da população possa ter entretenimento sem custo, uma vez que ingressos realmente são uma barreira de fruição para boa parte dos brasileiros. No entanto, as prefeituras também poderiam investir em cursos de formação ou construção de espaços culturais, para citarmos outros exemplos de iniciativas na área.

Os valores gastos com shows são adequados?

É preciso um certo cuidado quando recebemos as informações de quanto uma apresentação custou ao município. O valor da contratação com a prefeitura não equivale necessariamente ao cachê recebido pelo artista. A montagem de um show custa caro e envolve a estrutura do palco, iluminação, aparelhos de som, equipe, segurança, ambulância, bombeiros, entre outras despesas – conforme cada caso. Ou seja, o orçamento de um projeto cultural não necessariamente “é caro” a depender de qual será a entrega.

De todo modo, vale sim a reflexão sobre a pertinência e adequação de grandes contratações envolvendo cachês elevados. Sobretudo se considerarmos que o mesmo orçamento poderia custear até outras tantas apresentações do mesmo gênero pretendido pela Administração Pública. Cabe, portanto, uma difícil avaliação até para aqueles responsáveis por fiscalizar as contas públicas. Qual seria o patamar razoável, proporcional e adequado para esse tipo de apresentação? Ou ainda, cabe uma apreciação ética/moral em uma avaliação de legalidade ou isso deveria partir dos próprios artistas ao oferecer o preço dos seus serviços?

Mesmo se adentrarmos na iniciativa privada, é difícil fixar parâmetros muito objetivos e técnicos sobre o valor de um bem ou serviço cultural. O preço da apresentação de um artista está diretamente vinculado a aspectos que fogem das “regras tradicionais de oferta e demanda” do mercado. Tratam-se de critérios como reconhecimento do artista pelo público, “qualidade artística” e até a moda musical no momento da contratação.

De todo modo, a despeito da necessidade de se discutir de forma crítica os cachês de artistas, devemos ponderar que a atividade cultural não precisa ser necessariamente beneficente. Queremos dizer que o profissional da cultura também deve receber como qualquer outro trabalho.

Como as prefeituras escolhem os artistas?

As prefeituras podem escolher livremente os artistas que desejam contratar para seus eventos sem licitação. Isso porque não há como instituir uma competição objetiva entre diferentes intérpretes pela própria natureza dos serviços prestados. Como avaliar, por exemplo, se uma contratação de um grupo de moda de viola será mais vantajoso que uma dupla sertaneja?

O problema é que essa liberdade também abre uma janela para que o gestor possa contratar apresentações visando apenas fins eleitoreiros ou apadrinhamento político. Claro que isso entra no espectro excepcional dos desvios de finalidade da política cultural, como pode acontecer em qualquer pasta.

De todo modo, uma alternativa para racionalizar e democratizar tais gastos com cultura seria fortalecer o Sistema Nacional de Cultura (SNC). Este sistema está previsto no artigo 216-A da Constituição e tem como um dos seus mecanismos a criação de conselhos de política cultural, formados por membros da sociedade. Desse modo, a população também participaria do processo de definição dos objetivos da política e das prioridades de gastos em cultura.

A Rouanet é melhor ou pior que o financiamento das prefeituras?

São instrumentos diferentes.

As contratações das prefeituras são gastos públicos diretos em eventos e projetos escolhidos diretamente pelo gestor, de acordo com sua visão estratégica sobre as finalidades da política cultural. Evidentemente, neste caso, estamos falando de gastos locais (municipais).

O mecenato da Lei Rouanet é uma forma de gasto público indireto, pois o Estado deixa de arrecadar tributos de patrocinadores e doadores de projetos culturais. Logo, neste caso, quem efetivamente escolhe os projetos que vão receber apoio é o mercado – pois o gestor público apenas faz uma filtragem de adequação legal e viabilidade técnica e orçamentária. Sugerimos a leitura de nosso artigo com os 7 mitos sobre este instrumento. A Lei Rouanet, por sua vez, é federal.

Foto: Vista da Prefeitura da Cidade de São Paulo – José Cordeiro/ SPTURIS

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