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Emulação: direitos de propriedade intelectual e acesso à cultura

Recentemente, a conhecida empresa do mercado de jogos Nintendo processou dois grandes sites de emuladores e ROMs. O argumento utilizado pela empresa (e outras do ramo) é que essas ROMs são cópias piratas de seus jogos e que sua circulação gera prejuízos enormes à indústria. Em outras palavras, violam os direitos de propriedade intelectual das desenvolvedoras e distribuidoras de games.

De maneira bem simplificada, emuladores são programas que simulam um videogame no computador e ROMs os respectivos “cartuchos” ou CDs. Ou seja, é uma maneira de poder jogar diversos games no computador, celular e outros dispositivos sem ter os produtos originais.

As ações judiciais desencadearam uma reação em cadeia de sites de emuladores que, temerosos com possíveis represálias, passaram a retirar suas páginas e conteúdos do ar. Esse é um momento especialmente delicado e importante para o setor, pois os catálogos de games estão sendo cada vez mais disponibilizados em plataformas e lojas online (ao invés das tradicionais cópias físicas).

Os direitos de propriedade intelectual impedem que qualquer pessoa utilize um ativo/um bem protegido sem autorização. Isso garante que os desenvolvedores possam retomar seus investimentos pelo licenciamento/venda de seus jogos. Aliás, é importante lembrar que os direitos de propriedade intelectual foram garantidos na própria Declaração dos Direitos Humanos (1948) e na Constituição Federal brasileira (1988), além de outros instrumentos normativos importantes.

Por outro lado, argumenta-se que a perseguição aos emuladores e ROMs pode gerar diversos efeitos negativos para a população e para o próprio mercado como:

  1. Barreira de acesso: os jogos e videogame não são acessíveis para todas as camadas da população, seja pelo preço, porque alguns títulos não são lançados em todos os países ou porque não há traduções para todas as línguas. A comunidade gamer ajudava nessa democratização dos jogos, por exemplo, traduzindo as ROMs para outros idiomas. Muitos só tiveram contato com alguns jogos por causa da emulação. Nesse caso, é importante lembrar que o direito de acesso à cultura e ao conhecimento também é considerado um direito fundamental e precisa ser sopesado com o direito de propriedade intelectual.
  2. Criação de mercado: o acesso é uma condição importante para a criação de um público consumidor. Há quem defenda que as ROMs ajudam a manter o interesse por jogos, temáticas e estéticas “retrô”, facilitando inclusive os lançamentos oficiais das grandes empresas nesse gênero.
  3. Mão de obra e novas criações: Muitos programadores narram que tiveram experiências importantes de formação a partir de trabalhos com emulação e ROMs. Alguns trabalhos geram inclusive novos processos criativos, com variações e adaptações dos jogos originais, os “mods”.
  4. Preservação da memória e da história: Alguns jogos possuem poucas cópias físicas remanescentes e ainda não foram (ou não serão) lançados oficialmente nas plataformas digitais. Isso significa que parte desse acervo não estará acessível porque não há interesse ou viabilidade do mercado em preservá-lo, correndo o risco de se perder permanentemente. Há estimativas de que 90% dos filmes feitos antes de 1929 estão perdidos para sempre.

 

Alguns jogadores argumentam, inclusive, que só utilizam ou criam ROMs de jogos para os quais já tenham adquirido a cópia física. Isso acontece porque o cartucho pode ficar sem bateria, o console não funciona mais ou simplesmente porque deseja ampliar sua experiência e formas de jogar através da emulação. Nessa hipótese, também estamos falando de violação de direitos?

Outra reflexão diz respeito ao prazo de proteção dos jogos. Parte da comunidade gamer defende que um prazo menor de tutela já seria suficiente para que as empresas recuperassem seus investimentos. Em outras palavras, em um cenário de contínuas mudanças e evoluções, faz sentido que a proteção de “jogos antigos” perdure por mais de vinte ou trinta anos?

A questão certamente não é fácil. Vale lembrar como o advento e popularização da internet mudou a forma de consumir e se relacionar com músicas e obras audiovisuais. Esses mercados, depois de anos lutando contra downloads ilegais, mudaram de foco e passaram a oferecer serviços mais consistentes aos indivíduos. Isso ajudou a promover uma grande migração de usuários para serviços como o Netflix e Spotify.

Obviamente, isso não resolveu todas as questões discutidas acima. Mesmo nesses casos, há limitações de catálogo por território, a barreira da língua etc. Outro exemplo: vale lembrar que músicas gravadas em vinil só podem ser acessadas pelas mídias físicas ou pelos downloads não oficiais.

O tema da emulação coloca em confronto alguns dos chamados direitos culturais: de um lado, os direitos de propriedade intelectual, de outro o direito de acesso e de preservação da cultura e da memória. Há um claro conflito de interesses e direitos que precisará ser ponderado não apenas pelo judiciário, legislativo e executivo, mas pelos próprios agentes do setor. Será que vale à pena, de fato, desmantelar toda a cadeia da emulação? Ou ela faz parte da própria dinâmica desse mercado? Talvez o Direito possa ser uma ferramenta útil de conciliação dos direitos econômicos, sociais e culturais.

 

Atualização: A Nintendo continua movimentando ações contra sites de roms e hackers de games. Conferir algumas matérias:

  • https://variety.com/2018/gaming/news/nintendo-wins-judgement-rom-lawsuit-1203027186/
  • https://www.vice.com/en_us/article/8xpekz/nintendo-sues-switch-modded-nes-classic-pirate-californian
  • https://www.polygon.com/2019/9/11/20860039/nintendo-copyright-trademark-infringement-rom-lawsuit

 

Imagem: jogo Super Mario Bros 3 (1988), da Nintendo.

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