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Filmagens em Locais Públicos: os cuidados que uma produtora deve ter na produção de obras audiovisuais

As filmagens de uma obra audiovisual, seja ela ficcional ou documental, não ocorrem apenas em estúdios e sets fechados. Muitas vezes, estas produções são realizadas em locais públicos – como parques, praias e pontos turísticos. Nestes casos, a produtora e equipe precisam ter um cuidado especial durante as gravações, já que nem tudo pode ser objeto de filmagem sem a devida autorização.

Abaixo, elencamos os principais pontos de atenção que devem ser levados em consideração antes e durante filmagens em locais públicos:

  1. Direito de Imagem

Quando pensamos em gravações em locais públicos, a primeira problematização que vem à mente são as pessoas que não fazem parte do elenco, da figuração ou da equipe, que eventualmente podem aparecer nas filmagens. É necessário pedir autorização pelo uso da imagem dessas pessoas? Depende do tipo de uso.

A imagem de um indivíduo é protegida pelos chamados direitos de personalidade, os quais toda pessoa física é detentora. O art. 20 do Código Civil[1] determina que, caso o uso da imagem de terceiro tenha aproveitamento comercial ou atinja a honra, boa fama ou respeitabilidade do representado, este poderá requerer a suspensão do uso de sua imagem, bem como medidas indenizatórias, pela via judicial. Assim, considerando que obras audiovisuais possuem algum aproveitamento comercial, a praxe é que todo e qualquer uso da imagem de alguém, nesse contexto, necessita da autorização do retratado ou de seus herdeiros, no caso de pessoas já falecidas.

No entanto, existem decisões judiciais que atenuam ou possibilitam o uso da imagem sem a autorização do seu titular. Dentre alguns dos critérios utilizados nestas decisões, podemos elencar:

  1. Uso com finalidade jornalística ou informacional, como forma de garantir o direito à informação e à memória: parece que este é o caso do documentário, apesar de não ser pacífico o entendimento de que obras documentais possuam finalidade informacional. Isso, porque, ainda que exista um fim comercial, o objetivo específico deste tipo de conteúdo é a comunicação ao público sobre determinado assunto, sob o ponto de vista do produtor[2];
  2. Uso sem finalidade comercial ou que não desrespeite à honra, boa fama e respeitabilidade do retratado[3] – conforme o próprio artigo 20 do CC;
  3. O retratado ser pessoa pública: em 2016, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou entendimento já praticado de que o caráter público de certa pessoa atenua a proteção de sua imagem[4]. No julgamento da ADI nº 4815, foi estabelecido que obras biográficas, sejam elas literárias ou audiovisuais, poderão ser produzidas sem o consentimento do biografado, em prol dos direitos constitucionais de liberdade de expressão, acesso à informação e vedação à censura. Na decisão, também foi determinado que o grau de notoriedade do representado é fator relevante na análise do caso concreto.
  4. Imagem de pessoa em contexto público e capturada em local público: o local público, por si só, costuma ser utilizado como argumento autorizativo para uso da imagem de terceiros[5]. No entanto, não são em todas as situações que o uso é permitido sem a devida autorização. O indivíduo deve também estar em contexto público, ou seja, em situação que não desrespeite a sua honra, boa fama e respeitabilidade – como, por exemplo, uma pessoa andando na rua, participando de uma manifestação, na plateia de um show, dentre outros. No julgamento do REsp n. 1.082.878/RJ[6], o STJ entendeu como abusividade do uso da imagem a publicação em tabloides da foto de ator, que estava em local público, beijando mulher que não era sua cônjuge. Em outras palavras, mesmo uma figura pública, em local público, pode estar em uma situação privada, no qual sua privacidade deve ser respeitada.

A partir dos critérios mencionados acima, é possível classificar o risco jurídico em alguns casos práticos, conforme a matriz indicada abaixo.

Por óbvio, toda análise de risco deve ser feita sempre no caso concreto. É por esse motivo que uma matriz de risco acaba sendo útil, uma vez que passa por um espectro que considera esses diversos fatores. Vale mencionar que a análise de risco costuma considerar o conjunto desses critérios e não um ou outro isoladamente. Ademais, costuma-se fazer também um juízo de razoabilidade e proporcionalidade, ou seja, o registro audiovisual da pessoa que está no local público é razoável e proporcional às finalidades de informação do documentário?

Para redução de riscos, é importante que a equipe tome certas medidas durante as filmagens em locais públicos como: (a) fazer a delimitação de fácil visualização do local que será filmado; (b) indicar com placas ou avisos em microfone/megafone que o local demarcado está sendo gravado para utilização em obra audiovisual e que, ao permanecer no local, o indivíduo consente com o possível uso de sua imagem na obra; (c) ter em mãos termos de autorização de uso de imagem nos dias da filmagem, caso seja necessário; e (d) evitar ao máximo a gravação de crianças, de pessoas em contexto privado com foco excessivo e de indígenas. Importante ressaltar, que os direitos de imagens de indígena representado individualmente são de titularidade do retratado, ao passo que, o direito de imagem de uma tribo indígena pertence à coletividade, constituindo, portanto, um direito coletivo, nos termos do art. 5, §2º, da Portaria nº 177/PRES/2006. Para mais informações sobre direito de imagem de indígenas acesse aqui.

  1. Direito à Privacidade

Além do uso da imagem de terceiros, outro ponto que merece atenção, durante as gravações em locais públicos, é a possível violação do direito à privacidade, que protege aspectos da intimidade e individualidade de um indivíduo. Assim como o direito de imagem, o direito à privacidade é um dos direitos da personalidade, os quais todas as pessoas físicas são titulares. Esse, é, inclusive, protegido na Constituição, em seu artigo 5º, X[7] . Alessandro Hirata defende que a privacidade, apesar de referir-se a um aspecto privado da vida de um indivíduo, é caracterizada pelo viver entre outros – como, por exemplo, em família, entre amigos e durante o lazer – isto é, possui uma condição social. Ao passo que a intimidade diz respeito ao íntimo, ou seja, é o que o indivíduo reserva para si, sem que qualquer repercussão social ou em sua vida privada[8].

Desse modo, durante as filmagens em locais públicos, a produtora deve estar atenta a informações particulares de terceiro que eventualmente podem ser divulgadas no projeto sem a devida autorização ou que de algum modo possam gerar uma exposição pública de aspectos privados da vida dessa pessoa – como, por exemplo, placas com números de telefones e outras informações de contato ou a filmagem da fachada de uma casa ou edifício em que seja possível identificar seus moradores em cena. Afinal, a reprodução dessas informações privadas pode, justamente, por expor a pessoa ao grande público do audiovisual e infringir seu direito à privacidade.

Importante destacar, que, com relação à placa de veículos, ao contrário do que se acredita, o risco de incluir em obra audiovisual a imagem da placa de automóvel de terceiro sem a sua autorização costuma ser baixo. Isso, porque através do número da placa é possível obter apenas algumas poucas informações sobre o veículo, como modelo e ano, o que não viola o direito à privacidade ou intimidade, já que não é possível obter nenhuma informação referente ao proprietário do veículo. Para a obtenção de maiores informações, são necessários outros dados, como o número do Registro Nacional de Veículos Automotores – RENAVAM ou o QR-Code que consta na placa, que muito provavelmente não será possível de identificar nas filmagens, apenas no caso de um close-up.

  1. Direito Autoral

Por fim, com relação aos direitos autorais, obras situadas permanentemente em logradouros públicos – como grafittis e esculturas – podem ser representadas livremente, inclusive em obras audiovisuais, sem necessidade de autorização do autor, conforme o art. 48 da Lei de Direitos Autorais.

Assim, caso uma produtora queira gravar a cena de um documentário no Beco do Batman – ponto turístico da cidade de São Paulo conhecido por seus diversos grafittis –, a princípio, não será preciso obter a licença de todos os grafiteiros, cujas obras apareçam nas filmagens, ainda mais se elas configurarem apenas como fundo de cena. Normalmente, o que se recomenda é evitar tomadas com foco nessas obras, conciliando, assim, a exceção do artigo 48 da LDA com o artigo 46, inciso VIII, que permite a reprodução de pequenos trechos quando não há prejuízo ao autor.

Contudo, em 2011, no julgamento do REsp nº 951.521/MA[9], o STJ firmou entendimento de que a representação de obras situadas em logradouros públicos não será permitida nos casos de a reprodução ter finalidade comercial direta. No caso, o artista Sival Veloso ajuizou ação de indenização em face de empresa que reproduziu em cartões telefônicos, que foram posteriormente comercializados, imagens de esculturas de sua autoria sem a devida autorização. Na decisão, o STJ entendeu que: “no momento em que a foto serve à ilustração de produto comercializado por terceiro para obtenção de lucro e sem a devida autorização, passa-se a ofender o direito autoral do artista”.

Assim, no caso de obras audiovisuais publicitárias, por exemplo, é sempre necessário obter autorização do artista para que a obra situada em local público possa ser utilizada no projeto. Já no caso de obras audiovisuais ficcionais ou documentais, provavelmente, o registro da obra é apenas incidental, com alguma finalidade preponderantemente artística e não comercial direta. No entanto, caso contrário, também será necessária a obtenção de autorização para uso da obra de terceiro no projeto.

Em resumo, no caso de obras em logradouro público, usamos a seguinte matriz de risco:


[1] Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

[2] O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação nº 9064620-58.2006.8.26.0000, já chegou a reconhecer a finalidade jornalista e informativa do documentário e concluiu o seguinte: “Não se discute o fato de que a imagem das pessoas não pode ser utilizada por terceiro para fins comerciais sem autorização do titular. No entanto, no caso em apreço, não houve a intenção de exploração comercial da imagem do marido e genitor dos apelantes, mas sim apenas o exercício regular do direito de informar”. (TJSP; Apelação Cível 9064620-58.2006.8.26.0000; Relator (a): Coelho Mendes; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos – 2ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 22/11/2011; Data de Registro: 23/11/2011).

[3] AgInt no AREsp n. 1.698.424/SP, Relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 09/10/2023, DJe de 16/10/2023; e AgInt nos EDcl no REsp n. 1.698.711/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 11/9/2023, DJe de 15/9/2023.

[4] TJSP; Apelação Cível 1034988-91.2014.8.26.0114; Relator (a): Percival Nogueira; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 9ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/10/2017; Data de Registro: 31/10/2017; e TJSP; Apelação Cível 0191424-16.2009.8.26.0100; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 14ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/04/2016; Data de Registro: 05/04/2016.

[5] REsp n. 1.449.082/RS, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 21/3/2017, DJe de 27/3/2017.

[6] REsp n. 1.082.878/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/10/2008, DJe de 18/11/2008.

[7] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (…).

[8] HIRATA, Alessandro. Direito à Privacidade. Enciclopédia Jurídica da PUCSP. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/71/edicao-1/direito-a-privacidade. Acesso em 10/06/2024.

[9] REsp n. 951.521/MA, relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 22/3/2011, DJe de 11/5/2011.

Foto de KAL VISUALS na Unsplash

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