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Usucapião de obras de arte é possível?

Quem atua no setor cultural e de memória sabe: a trajetória de uma obra de arte nem sempre é simples de reconstruir. Museus, arquivos, bibliotecas e colecionadores frequentemente lidam com peças que chegaram a seus acervos há décadas, muitas vezes sem a formalização documental adequada. Nesse contexto, surge uma pergunta desafiadora, que gera debates entre os operadores do direito: será que é possível obter a propriedade de uma obra de arte por meio de usucapião?

O tema, que pode soar estranho à primeira vista, é muito relevante para a prática de instituições de memória. Afinal, sem a devida documentação, surgem riscos como inconsistências contábeis, questionamentos em procedimentos de auditoria, dificuldade para contratar seguros, insegurança em empréstimos, ou até disputas judiciais sobre a propriedade da obra. A boa notícia é que é provável que o direito brasileiro tenha resposta para essa situação.

O que é usucapião?

Usucapião é uma forma de aquisição da propriedade baseada na posse prolongada, contínua e incontestada de um bem. Trata-se da chamada prescrição aquisitiva: após certo tempo, quem age como dono de fato de um bem passa a ser reconhecido também como dono de direito.

Embora a usucapião seja mais conhecida em relação a imóveis, ela se aplica igualmente a bens móveis, como obras de arte, objetos de coleção e livros raros. O Código Civil prevê duas modalidades principais:

  • Usucapião ordinária (art. 1.260) – Ocorre quando a pessoa possui o bem móvel por 3 anos, com justo título (um contrato, recibo, doação etc.) e boa-fé (isto é, sem ciência de que a obra poderia ser furtada ou ilegal);
  • Usucapião extraordinária (art. 1.261) – Se a posse se estende por 5 anos, a propriedade é adquirida independentemente de título ou boa-fé. Aqui basta comprovar a posse contínua e pacífica durante o período exigido.

A posse que dá direito à usucapião não se resume apenas a guardar ou conservar a obra. É necessário demonstrar atos típicos de dono, como expor, restaurar, segurar, emprestar, catalogar e proteger o bem. Esses comportamentos reforçam a intenção de agir como proprietário (animus domini), elemento central para a caracterização do instituto.

A realidade do setor de memória

Na prática, a entrada de obras em coleções institucionais ou particulares pode ocorrer de várias formas: compra, doação, legado em testamento, produção interna (como no caso de obras comissionadas), entre outros. O ideal é que cada ingresso seja acompanhado de documentos claros, datados e assinados, como:

  • Compra – Nota Fiscal ou Contrato de Compra e Venda;
  • Doação – Contrato de Doação;
  • Sob encomenda – Contrato de Prestação de Serviços ou semelhante;
  • Legado – Testamento ou decisão judicial.

No entanto, como se sabe, nem sempre essa documentação está disponível, seja pela informalidade de negociações antigas ou pela perda de papéis ao longo dos anos. É justamente aí que a usucapião funciona como remédio para a informalidade, oferecendo segurança e estabilidade patrimonial.

E se não houver documentação?

Quando não existe título formal, mas a entidade ou colecionador mantém a posse da obra há muitos anos, entra em cena a usucapião extraordinária. Conforme explicamos acima, é preciso comprovar que a posse foi:

  • Contínua (sem interrupções);
  • Mansa e pacífica (sem oposição de terceiros);
  • Duradoura por pelo menos 5 anos.

Essa comprovação pode vir de diferentes fontes, tais como:

  • Catálogos antigos de exposições;
  • Apólices de seguro em que a obra aparece listada;
  • Laudos de procedimentos de conservação realizados;
  • Depoimentos de curadores, técnicos e testemunhas;
  • Registros de empréstimo da obra para outras instituições.

A maior parte dos especialistas entende que entrar com uma ação judicial é necessário para que a propriedade de obras de arte seja formalmente reconhecida. Mesmo quando todos os requisitos da usucapião extraordinária de bem móvel estão presentes, apenas a sentença judicial pode declarar oficialmente a propriedade.

Essa decisão terá efeito retroativo, reconhecendo a titularidade desde a data em que a posse se consolidou, e tem natureza meramente declaratória, ou seja, simplesmente confirma um direito já existente.

Nos casos em que as obras não foram reivindicadas por terceiros e o acervo não apresenta complexidades, como dúvidas sobre autenticidade ou origem de saques de guerra, as chances de êxito são consideradas altas.

Casos concretos no Judiciário

Embora pouco conhecidos fora do meio jurídico, já existem precedentes em que o Poder Judiciário reconheceu a usucapião de obras de arte:

  • Caso Aleijadinho (Tribunal de Justiça de SP – TJSP) – Uma colecionadora manteve esculturas atribuídas a Aleijadinho em sua posse por mais de 40 anos. A comprovação veio por meio de panfletos de exposições em que as obras foram exibidas. O tribunal reconheceu a usucapião extraordinária, declarando sua propriedade.
  • Caso Arte Sacra (TJSP) – Um colecionador adquiriu uma peça de arte sacra em 1979 e permaneceu com ela por mais de 20 anos, sem oposição. O tribunal reconheceu a posse contínua e pacífica, declarando-o proprietário pela usucapião extraordinária.
  • Caso Di Cavalcanti (TJSP) – Uma empresa mantinha em sua sede um quadro de Di Cavalcanti desde 2006. Ainda que a ação tenha sido ajuizada antes do prazo de 5 anos, havia justo título e posse de boa-fé. O tribunal reconheceu a usucapião ordinária, consolidando a aquisição da obra após 3 anos.
  • Caso obra “Mariana” (TJSP) – Disputa entre duas famílias sobre a propriedade da obra “Mariana” (ou “Mulata com Flores”), de Di Cavalcanti. O Tribunal reconheceu que a parte ré detinha a posse contínua e ostensiva da obra desde 2004, incluindo exposições e reportagens em revistas de grande visibilidade, estando presentes os requisitos da usucapião extraordinária.

Usucapião e direitos autorais: onde está o limite?

É importante fazer uma distinção essencial: o usucapião só se aplica à obra física (quadro, escultura, instalação etc.) – o chamado “corpus mechanicum”. A doutrina é pacífica ao afirmar que não é possível usucapir direitos autorais, pois eles não se confundem com a posse da obra em si e não cumprem os requisitos legais do instituto, como a posse prolongada.

O art. 37 da Lei de Direitos Autorais deixa isso claro: “A aquisição do original de uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário entre as partes e os casos previstos nesta Lei.” Ou seja, ser dono de um quadro não dá ao adquirente o direito de explorar economicamente a criação, salvo acordo específico em contrato ou eventual previsão legal.

A jurisprudência reforça essa interpretação. A Súmula 228 do STJ dispõe que: “É inadmissível o interdito proibitório para a proteção do direito autoral.” Isso significa que se a proteção possessória é inaplicável aos direitos autorais, também não é possível usucapir tais direitos. Mais recentemente, no julgamento do REsp 1380630/RJ, esse entendimento foi confirmado explicitamente pelo STJ.

Na prática, isso significa que quem se torna proprietário de uma obra física por usucapião adquire apenas o objeto material, podendo basicamente exibi-lo ou emprestá-lo. Já os direitos de reprodução, adaptação ou exploração econômica permanecem com o autor ou seus herdeiros, até que a obra entre em domínio público.

Foto de Anna Kolosyuk na Unsplash

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