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A tragédia do Museu Nacional e a violação dos direitos culturais no Brasil

No último domingo (02/09) perdemos parte de nossa história e identidade. O Museu Nacional do Rio de Janeiro, fundado há exatos 200 anos e hoje vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi destruído por um incêndio de grandes proporções. O fogo se alastrou sobre o acervo de 20 milhões de peças que incluíam desde fósseis a tesouros mundiais. A instituição servia não apenas como um repositório do patrimônio histórico-cultural, mas como fonte e matriz de educação, ciência e pesquisa. Era o maior acervo da América Latina e o quinto do mundo. Evidentemente, o próprio prédio, o Palácio de São Cristóvão, que chegou a abrigar a família real, também foi vitimado pela tragédia. O dano (material e imaterial) é irreversível e irreparável. Nenhuma medida poderá reverter das cinzas este patrimônio.

Mas, afinal, o que fez com que um Museu tão importante não comportasse um sistema de controle de incêndio? Ou ainda, poderíamos nos perguntar: como a estrutura do local não continha sequer água para que os bombeiros pudessem aplacar o fogo?

O caso não foi um evento isolado, mas expressa o descaso governamental com os setores da educação e cultura. De acordo com levantamento da BBC, em 10 anos incêndios já dizimaram ao menos 8 prédios com tesouros culturais e científicos no Brasil. Há pelo menos três anos o Museu Nacional não recebia o repasse anual integral dos R$ 520~550 mil para manutenção mínima de suas atividades. As consequências da escassez de recursos já vinham sendo anunciadas com o fechamento de visitações, a dificuldade de combater infestações de cupins, a deteriorização da infra-estrutura etc. Segundo o diretor da instituição, o BNDES concederia um financiamento de R$ 21 milhões que serviria também para a instauração de um sistema de combate a incêndio, mas o dinheiro nunca foi liberado.

Na noite de segunda, os Ministros Rossieli Soares (Educação) e Sérgio de Sá Leitão (Cultura) anunciaram que o governo federal destinará R$ 10 milhões para obras de emergência no local. Impossível deixar de notar que esse valor anunciado corresponde a 18 vezes o orçamento anual do Museu. Em outras palavras, é muito possível que se apenas uma parcela desse valor tivesse sido liberada antes, teríamos preservado e desenvolvido o que já não é possível recuperar. O sentimento de indignação pelo incidente só aumenta se comparado a gastos do governo como o custo anual de um deputado ou o perdão da dívida de bancos.

Quando o Estado deixa de investir em cultura, não está deixando de fazer política. A omissão, representada principalmente pelo corte de gastos públicos, é uma intensão, uma escolha em prol da ignorância, do esfacelamento de nossas riquezas culturais e da perda de nossos valores e identidade. Trata-se de reduzir a cultura dos indivíduos e das coletividades. Essa dilaceração é silenciosa. Corta aos poucos o espírito, o corpo e a mente. Faz com sejamos menos do que poderíamos ser. A quem interessa o apequenar do povo? Quem ganha com um povo que não se reconhece e não se valoriza como tal?

Aos que entendem o parágrafo anterior como demasiadamente alarmista, vale pontuar que, em 2017, mais brasileiros foram ao Louvre, em Paris, do que ao Museu Nacional – um dos sintomas de nossa colonização. A política cultural não é manca apenas no financiamento da preservação de acervos, mas falha na democratização e popularização do acesso ao patrimônio através da formação de público, promoção de atividades e assim por diante.

Fato é que a implementação de uma política cultural, com protagonismo e postura propositiva do Estado, deixou de ser mera opção ideológica desde o advento da Constituição de 1988. De acordo com o artigo 215, o “Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” Isso implica que o Poder Público deve atuar ativamente na garantia e promoção dos direitos culturais, por exemplo, o direito de preservação e acesso ao patrimônio cultural. Nesse mesmo sentido, a Constituição também prevê que o “Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação” (art. 216, § 1º) e que “os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei” (§ 4º).

A Lei n.º 11.904/2009, que institui o Estatuto de Museus, dá um passo na estruturação de uma política para os museus e para a concretização desse programa constitucional, prevendo inclusive disposições sobre a segurança de acervos:

Art. 21.  Os museus garantirão a conservação e a segurança de seus acervos. 

Parágrafo único.  Os programas, as normas e os procedimentos de preservação, conservação e restauração serão elaborados por cada museu em conformidade com a legislação vigente.  

Art. 22.  Aplicar-se-á o regime de responsabilidade solidária às ações de preservação, conservação ou restauração que impliquem dano irreparável ou destruição de bens culturais dos museus, sendo punível a negligência.  

Art. 23.  Os museus devem dispor das condições de segurança indispensáveis para garantir a proteção e a integridade dos bens culturais sob sua guarda, bem como dos usuários, dos respectivos funcionários e das instalações. 

Parágrafo único.  Cada museu deve dispor de um Programa de Segurança periodicamente testado para prevenir e neutralizar perigos. 

Art. 24.  É facultado aos museus estabelecer restrições à entrada de objetos e, excepcionalmente, pessoas, desde que devidamente justificadas.  

Art. 25.  As entidades de segurança pública poderão cooperar com os museus, por meio da definição conjunta do Programa de Segurança e da aprovação dos equipamentos de prevenção e neutralização de perigos. 

Art. 26.  Os museus colaborarão com as entidades de segurança pública no combate aos crimes contra a propriedade e tráfico de bens culturais. 

Art. 27.  O Programa e as regras de segurança de cada museu têm natureza confidencial. 

O Plano Nacional de Cultura, previsto no artigo 215, § 3º, da Constituição, e instituído pela Lei n.º 12.343/2010, também previu diversas disposições em prol da preservação e difusão do patrimônio histórico-cultural. Constavam como objetivos do Plano, por exemplo, “proteger e promover o patrimônio histórico e artístico, material e imaterial“; e “promover o direito à memória por meio dos museus, arquivos e coleções” (art. 2º, incisos II e IV). O anexo do documento, com as diretrizes, estratégias e ações previa dispositivos como:  “2.5.3  Garantir controle e segurança de acervos e coleções de bens móveis públicos de valor cultural, envolvendo a rede de agentes responsáveis, de modo a resguardá-los e garantir-lhes acesso” e “2.5.4  Estimular, por meio de programas de fomento, a implantação e modernização de sistemas de segurança, de forma a resguardar acervos de reconhecido valor cultural“.

É evidente que a legislação, por si, não é capaz de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e a salvaguarda de nosso patrimônio. Porém, denuncia que o descaso governamental não pode ser justificado pela ausência de comandos normativos claros – que, aliás, se somam aos tratados de proteção ao patrimônio e à cultura dos quais o Brasil é signatário. A violação dos direitos culturais no país é fruto de um fenômeno mais complexo, que envolve inclusive a compreensão e importância dada a esta categoria não só pela classe política, mas pela população como um todo.

O cenário não é dos mais otimistas. A tragédia apenas sinalizou uma medida paliativa de pequeníssima reparação do ocorrido. Não há qualquer sinal de discussão estrutural e profunda sobre a política cultural do país nos quadros do governo. Não se fala em renovação do Plano Nacional de Cultura, aumento real do orçamento da cultura, descontingenciamento do Fundo Nacional de Cultura, implantação do Sistema Nacional de Cultura etc. Aliás, não se fala da urgente necessidade em elevar a cultura à pauta de todas as pastas do Poder Público. Quem sabe esse momento de infelicidade possa alavancar e ampliar os debates tão necessários sobre a importância de nossa cultura e as ações para promovê-la.

 

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