Com a contribuição de Nichollas Alem
A maior parte dos produtores culturais já está familiarizada com as precauções jurídicas a serem adotadas ao submeter seus projetos a leis de incentivo. Contudo, à medida que a Lei Paulo Gustavo – LPG surge como uma nova oportunidade de apoio à cultura, essa mesma atenção às questões legais é essencial aos projetos que serão submetidos aos editais estaduais e municipais que em breve serão lançados.
Para auxiliá-los, listamos a seguir alguns dos principais cuidados jurídicos que você deve considerar ao planejar e executar seu projeto:
A. Pré-Contratos
É possível que algum edital peça uma comprovação de que o proponente tem os “direitos” para fazer o projeto. Isso pode ser feito demonstrando que a produtora tem os direitos sobre um argumento ou roteiro, por exemplo.
O cuidado aqui é a forma de fazer essa transferência. Em algumas negociações, o criador/roteirista só quer autorizar/ceder seus direitos para a produtora “se ela ganhar o edital“. O problema é que alguns modelos encontrados no mercado e, por vezes, disponibilizados no próprio edital são muito simplificados e não explicam o que acontece se a produtora não ganhar. Ou seja, nesse caso, os direitos voltam ao criador? Como isso funciona?
Assim, o ideal é que criadores/roteiristas e a produtora resolvam todos os detalhes de seu acordo desde o começo da relação. Isso envolve não apenas os direitos, mas combinados de pagamentos, futuros serviços e assim por diante. Daí a importância de um pré-contrato ou de um contrato que deixe as regras claras.
O mesmo vale para eventuais talentos ou profissionais que a produtora queira ‘reservar’ ou comprometer logo no início do projeto. Assinar um pré-contrato pode ser um caminho bom para já acertar certos aspectos da negociação como preços, cronogramas e condições mínimas dos serviços.
B. Contratos
Contar com contratos escritos com a equipe que participa do seu projeto é um passo primordial. Um contrato bem redigido esclarece quais são as responsabilidades de cada um, o cronograma de trabalhos e de pagamentos, e, em caso de desentendimentos no futuro, protege ambas as partes, servindo como evidência das condições originalmente acordadas.
Ao assinar um contrato, os membros da equipe estão formalmente comprometidos com o projeto e isso incentiva um maior grau de profissionalismo por parte deles. Para o produtor, ter contratos formais aumenta sua credibilidade perante parceiros, patrocinadores e até mesmo os órgãos governamentais de fomento. Em síntese, os contratos auxiliam a minimizar riscos e garantem um ambiente de trabalho mais organizado e tranquilo.
Recomendamos que você tenha à mão um “kit” de contratos. No contexto de projetos audiovisuais, é possível ter minutas contratuais para, por exemplo, direção, roteiro, equipe criativa, equipe técnica, fornecedor de produtos, empréstimo de objetos, locação de imóvel e serviços de transporte. Se o projeto envolver uma exposição de artes visuais, para além da contratação da equipe (curadoria, arquitetura, design gráfico, editorial, marcenaria, montagem fina de obras etc.), é importante formalizar também os empréstimos de obras junto a colecionadores e as autorizações de direitos junto a artistas ou herdeiros – e assim por diante.
Além disso, uma assessoria jurídica especializada será capaz de identificar a necessidade de cláusulas específicas para projetos do setor cultural, como de direitos autorais – tópico abordado a seguir – e de confidencialidade. É de grande interesse do produtor evitar o vazamento de certas informações antes do lançamento público do projeto, o que é endereçado pela cláusula de sigilo.
C. Direitos autorais
A legislação da LPG não traz diretrizes específicas sobre a cadeia de direitos, mas sabemos que a maioria dos programas de fomento – bem como potenciais coprodutores, distribuidores e exibidores, através de um relatório da cadeia de direitos (chain of title) – exigem que o proponente detenha a titularidade dos direitos sobre o projeto. No audiovisual, a formalização da transferência de direitos autorais, do criador ao produtor responsável pelo projeto, é requisito para a obtenção do Certificado de Produto Brasileiro – CPB.
O advogado saberá identificar se a melhor abordagem no caso concreto é a formalização de uma cessão ou uma licença de direitos autorais. Dependendo do contexto, pode ser interessante garantir que os direitos retornem ao autor da obra caso o projeto não seja contemplado pelo edital.
Frequentemente, projetos culturais incorporam materiais de terceiros. É o caso das músicas que compõem a trilha sonora de um filme ou mesmo de fotografias que são incluídas em uma publicação. A assessoria jurídica pode auxiliar o produtor a obter as autorizações necessárias de editoras e gravadoras musicais, fotógrafos e demais detentores de direitos, a depender da natureza do projeto. Também pode ajudar a simplesmente redigir o modelo de licenciamento que o próprio produtor utilizará para entrar em contato com tais pessoas. Em nossa opinião, o uso de músicas e de imagens tiradas por fotógrafos profissionais, sem autorização prévia, representa um risco significativo para o projeto.
D. Uso de imagem e clearance geral
Outro risco considerável ao projeto decorre do uso da imagem e voz de indivíduos sem a análise de um especialista e, quando necessário, a obtenção de autorização por escrito da pessoa retratada. Os chamados direitos de personalidade devem ser objeto de avaliação cuidadosa sobretudo no caso de o projeto se basear na vida de alguém.
Inclusive, os riscos relativos ao uso de materiais pré-existentes (músicas, fotografias, trechos de textos, marcas, obras de arte em segundo plano etc.) e à representação de pessoas podem ser minimizados se o proponente do projeto contratar o clearance da obra final que será exibida ao público, quanto, ainda durante a fase de pré-produção, de materiais preliminares, como o roteiro de um filme.
A aparição de indígenas, menores de idade e animais silvestres, bem como a filmagem de fachadas prediais e locais públicos, podem demandar cautelas e autorizações adicionais.
E. Alvarás de menor
De modo geral, a participação de menores em projetos culturais – sobretudo em obras audiovisuais – depende de uma autorização judicial (alvará). O procedimento envolve certa complexidade e requer que o produtor tenha uma série de documentos à mão e faça o pedido perante o juiz com antecedência.
F. Cumprimento de diretrizes da LPG
É fundamental que o produtor cultural esteja por dentro das disposições da legislação – em especial do Decreto de Fomento à Cultura, o qual analisamos detalhadamente no 2º artigo desta série, e do Decreto regulamentador da LPG – e das exigências que cada edital trará.
Destacamos que os beneficiários dos recursos são obrigados a executar uma contrapartida social, seguindo uma abordagem similar à abordagem adotada pela Lei Rouanet. Isso envolverá a exibição gratuita do projeto com direcionamento a rede de ensino, profissionais de saúde e coletivos de cultura locais.
O projeto também deverá assegurar a acessibilidade a grupos com restrições do ponto de vista arquitetônico (como a adaptação dos locais do projeto a pessoas com mobilidade reduzida), comunicacional (para permitir o acesso de pessoas com deficiência intelectual, auditiva ou visual) e relacional (por meio da contratação de equipe sensibilizada e capacitada para atender o público).
Adicionalmente, os editais possivelmente exigirão ações afirmativas a serem observadas pelos proponentes.
G. Demais assuntos
Outras questões não descritas anteriormente podem aparecer ao longo da “vida” do projeto: registro de marca do título do projeto perante o INPI, verificação de apólices de seguro, questões regulatórias junto a órgãos públicos como a ANCINE, revisão de documentos de prestação de contas etc.
Você pode conferir os demais artigos da série Lei Paulo Gustavo em:
- nº 1 – Como funciona e últimos andamentos
- nº 2 – O que prevê o Decreto de Fomento à Cultura?
- nº 3 – Posso contratar advogado com recursos do projeto?
Foto de Avel Chuklanov na Unsplash