Este é o 2º artigo da série Cuidados Jurídicos no Setor Cultural. Para ler o 1º artigo desta série, acesse: https://institutodea.com/artigo/serie-cuidados-juridicos-no-setor-cultural-politica-de-direitos-autorais/.
Realizar uma exposição é um processo complexo e colaborativo que envolve o trabalho coordenado de muitas equipes e profissionais, que se unem para dar vida a uma ideia e apresentá-la ao público. Desde a fase de concepção até a execução da mostra, há várias questões que precisam ser consideradas, especialmente porque exposições lidam com obras de arte e com a imagem de pessoas – ambas questões protegidas pela legislação brasileira. Com isso, ao se depararem com as várias etapas de produção de uma exposição, é comum que as pessoas tenham dúvidas ou desconheçam os aspectos jurídicos envolvidos no processo.
Questões como “eu preciso assinar contratos com os curadores, designers, produtores, montadores etc.?”, “que tipo de contrato?”, “posso tirar fotos das obras que vão participar da exposição?”, “e inseri-las no catálogo?”, “para quem e como eu peço autorização para usar essas fotos?”, “minha exposição precisa ter uma classificação indicativa?” e “posso tirar fotos do público na exposição?” costumam surgir com frequência. Assim, com base na nossa experiência e buscando desvendar o mundo jurídico por detrás das artes visuais, vamos discutir aqui os 4 principais aspectos que um produtor cultural deve considerar ao realizar uma exposição: (1) direitos autorais, (2) contratos, (3) classificação indicativa, e (4) uso da imagem de pessoas.
1. DIREITOS AUTORAIS
O primeiro e mais importante tópico diz respeito aos direitos autorais. Esses são os direitos que nascem quando uma obra é criada: para você utilizar uma obra de arte na exposição ou nos materiais gráficos dela, é preciso, na maior parte dos casos, ter uma autorização. E é importante coletar essa autorização da pessoa certa. Há duas dimensões que todo produtor de exposições precisa considerar:
a) Por vezes, quem autoriza o uso da obra não é o próprio autor:
Isso acontece pois o direito autoral é dividido em direitos morais e direitos patrimoniais de autor. O primeiro grupo de direitos não pode ser transferido, pois trata da ligação subjetiva entre o autor e a obra. Já o segundo pode – sobretudo por meio de contratos, como veremos adiante – e diz respeito à utilização e exploração econômica da obra. Assim, o autor de uma obra pode escolher transferir seus direitos patrimoniais a uma outra pessoa ou instituição, que passa a ser a titular desses direitos. Já no caso de um autor que nunca transferiu os direitos a ninguém, quando ele vier a falecer, o seu herdeiro passará a ser o titular. É sempre o titular dos direitos patrimoniais que poderá, ou não, autorizar o uso da obra.
Pense em uma artista que, a pedido de um museu, cria uma escultura para participar em uma exposição, ser inserida no catálogo e, posteriormente, incorporada ao acervo da instituição. Para possibilitar a produção do catálogo, o museu contratou um fotógrafo. Anos depois, você seleciona essa escultura para participar da sua mostra, bem como constar nos materiais de divulgação. Para quem você pede autorização para reproduzir a imagem da escultura nessas peças gráficas? E para que a escultura participe da exposição?
A primeira resposta depende de qual foto será usada nos materiais, e quem é o titular dos direitos patrimoniais: se você for usar a foto tirada pelo fotógrafo do museu, você precisa saber qual deles pode dar a autorização (ou seja, quem é o titular dos direitos sobre a foto) e isso depende de qual foi o combinado entre o fotógrafo e o museu. Já se você for contratar um novo fotógrafo para registrar a escultura, você vai precisar de uma autorização para fotografar e, para isso, precisamos saber quem é o titular dos direitos sobre a escultura – o que depende do combinado entre a artista e o museu. Já a segunda questão é mais fácil: para expor uma obra, basta a autorização do proprietário do suporte da obra – no caso, o museu.
Diante desse exemplo, podemos perceber a importância de diferenciar o autor da obra, o titular de direitos patrimoniais de autor e o proprietário da obra. Em alguns casos, trata-se da mesma pessoa, mas, na maior parte das vezes, serão pessoas completamente diferentes. Isso, pois, podem existir várias “camadas” de direitos em cima da mesma obra – especialmente no caso de fotografias de obras de artes plásticas. Identificar essas diferenças e camadas no caso a caso é fundamental para conseguir as autorizações corretas para realizar a sua exposição.
b) Quando você quiser usar uma obra protegida por direitos autorais, é preciso verificar se uma autorização é necessária:
Sabemos que uma exposição não é composta apenas pelas obras que estão na parede. Ao visitarmos museus e centros culturais, frequentemente vemos folders, banners, panfletos e os costumeiros catálogos. E, para além desses materiais, há muitos outros que contribuem para a divulgação da mostra, tais como postagens nas redes sociais e na imprensa, ecobags, camisetas e cadernos. Se, na sua exposição, você desejar ter as obras de arte estampadas em objetos como esses, é importante que você obtenha autorização para tanto.[1]
Essa autorização deve ser dada pelo titular dos direitos patrimoniais, como visto acima, e pode ocorrer por meio de dois tipos diferentes de contratos: licença ou cessão. A cessão é a transferência definitiva dos direitos a um terceiro, que passa a ser o “dono” desses direitos (isto é, titular) e poderá usar a obra de acordo com o disposto em contrato (geralmente sem limitações). Vale dizer que uma cessão pode ser total ou parcial (abrangendo apenas alguns direitos específicos, como reprodução ou distribuição). A licença, por sua vez, diferentemente da cessão, é uma autorização pontual para o uso da obra, de modo que o licenciante permanece titular dos direitos patrimoniais de autor. Deste modo, a pessoa ou instituição autorizada poderá utilizar a obra dentro dos limites e condições especificados no documento.
É importante analisar, no caso a caso, qual tipo de autorização faz mais sentido. Tudo depende dos objetivos da autorização: se você quiser se tornar o “dono” dos direitos sobre a obra, o ideal é usar a cessão, entretanto, se há interesse em usar a obra apenas para algumas finalidades, basta assinar uma licença de direitos autorais.
Lembre-se: independentemente do tipo de autorização concedido, ao usar a obra é sempre importante atribuir créditos de autoria.
De acordo com nossa experiência profissional, museus e instituições do setor cultural em geral celebram cessões de direitos com seus profissionais criativos, por exemplo, fotógrafos, curadores, designers, produtores etc. Isso para possibilitar que os materiais criados no ambiente de trabalho (fotos, vídeos, textos, peças gráficas etc.) possam ser usados livremente no futuro, como em conteúdos de retrospectiva e até mesmo em itinerâncias das exposições. Já na hora de criar produtos com a imagem de uma obra de arte estampada, é mais comum que sejam obtidas licenças.
2. CONTRATOS
Quando estamos criando uma exposição, um dos aspectos mais relevantes são os contratos. Eles são ótimos não só para garantir o alinhamento entre as partes (sobre datas de entrega, responsabilidades, remuneração etc.), mas também porque a lei os exige: cessão de direitos só pode ocorrer por escrito. Para além disso, as operações de direitos autorais são interpretadas restritivamente, então se as partes não combinarem alguns detalhes, é a lei que irá dizer como funciona. Abaixo, falamos um pouco sobre os principais contratos que você deve dominar:
a) Autorização de direitos autorais:
Como já vimos, este é o documento que permite o uso de uma obra de arte. É importante prever (1) a abrangência da licença, isto é, quais direitos estão sendo licenciados; (2) prazo de validade da licença; (3) países nos quais a licença será válida; (4) se será gratuita ou se haverá pagamento; e (5) tipos de usos autorizados, isto é, o que pode ser feito com a obra, em quais mídias / suportes e para quais finalidades.
b) Empréstimo, seguro e transporte de obras:
Parte essencial de uma exposição são as obras, que podem pertencer a acervos de museus ou coleções privadas. Para tê-las em sua mostra, deve-se assinar um contrato de empréstimo, no qual estarão indicadas informações da exposição, da instituição que receberá a obra e do proprietário da obra, além das condições do empréstimo (locais de coleta e devolução, taxa de empréstimo, cuidados que devem ser tomados, forma de atribuição dos créditos de coleção, quem será responsável pelo quê etc.).
Ainda, outro tópico crucial do empréstimo é definir quem arcará com o transporte e com o seguro da obra. No caso do transporte, recomenda-se que ele seja realizado por empresa especializada com expertise no manuseio de obras de arte. Já o seguro deve ser na modalidade “todos os riscos / prego-a-prego”, para cobrir todo o período de empréstimo da obra, desde o momento em que é embalada e coletada até a sua chegada na sala expositiva e posterior devolução ao proprietário.
c) Prestação de serviços:
Em uma exposição, na qual muitos são os trabalhadores que criam obras protegidas por direitos autorais, esses contratos adquirem uma relevância especial. Para garantir que os serviços sejam prestados de forma satisfatória e de acordo com o que foi combinado entre as partes, é importante que este documento seja assinado antes do início das atividades e tenha todos os detalhes da contratação (função, atividades previstas, cronograma, forma e data de pagamento, data de início e fim dos serviços e obrigações de cada parte), bem como uma previsão de uso de imagem do colaborador – como veremos no item 4.
No caso de pessoas que desempenham funções criativas (curadores, fotógrafos, arquitetos, designers, produtores, autores de textos etc.), o contrato deve conter também cláusulas de direitos autorais. A escolha por ter uma cessão ou uma licença de direitos depende da negociação entre as partes e também, como vimos no item 1.b., dos objetivos de quem contrata.
3. CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA
Como você provavelmente já ouviu falar, exposições de arte devem ter indicação da sua classificação etária: um mecanismo que indica a idade recomendada para acesso e informa, em linhas genéricas, o conteúdo das obras daquela mostra.
Cabe aos responsáveis pela mostra definir a idade sugerida, o que é chamado de autoclassificação. Para fazê-la, deve-se conhecer o Guia Prático de Artes Visuais do Ministério da Justiça, bem como contar com o olhar especializado dos curadores, educadores e equipe jurídica. Isso permite uma visão completa e contextualizada de toda a mostra, garantindo que a autoclassificação seja fiel ao conteúdo completo das obras expostas.
Para saber mais detalhes sobre a prática da classificação indicativa de exposições, dê uma olhada no artigo Classificação indicativa em instituições culturais e exposições, publicado no IDEA por Olívia Bonan e Renata Ferreira.
4. IMAGEM E VOZ DE PESSOAS
Por fim, ao produzir uma exposição, deve-se também tomar cuidados com relação a imagem e voz das pessoas – ou, na linguagem técnica, os direitos de personalidade: tanto nos casos de exposições com fotos e vídeos que registram pessoas, quanto no momento de contratar colaboradores e fazer materiais de divulgação do seu projeto. Isso porque a imagem, voz e outros sinais que identificam uma pessoa são protegidos pela legislação brasileira e, portanto, de modo geral, é preciso de uma autorização para utilizá-los, especialmente quando estivermos falando de uma pessoa “comum” – isto é, uma pessoa que não é famosa ou tem uma vida pública, como é o caso dos políticos.
Em nossa experiência assessorando produtores, são 3 os casos mais recorrentes envolvendo direitos de personalidade em exposições:
a) Obras que retratam pessoas: Normalmente é o próprio artista que, no momento de produzir a sua obra, coleta a autorização para registrar aquela pessoa. Assim, se uma obra como essa participa da sua exposição, uma boa prática é buscar nomear as pessoas ali retratadas.
b) Contratação de colaboradores: Tendo em vista que as exposições e os processos de montagem são frequentemente fotografados e filmados (p. ex., para divulgar o projeto já pronto ou fazer “making-offs” e visitas aos bastidores), um cuidado importante é garantir que você possa fotografar e filmar todas as pessoas que apareçam nos registros. Por isso, recomendamos que contratos de prestação de serviços tenham cláusulas de direitos de personalidade, por meio das quais a pessoa contratada autoriza o produtor a captar e usar a sua imagem.
c) Materiais nos quais aparecem visitantes: Para fazer registros das salas expositivas, é importante avisar o público que o local está sendo filmado. Isso pode ser feito por meio de uma placa no espaço, avisos em megafone, entrega de folhetos etc. Apesar disso, deve-se tomar cuidado para que nenhum visitante saia em destaque ou possa ser claramente identificado. Caso contrário (p. ex., no caso de depoimentos para redes sociais), o recomendado é coletar uma autorização por escrito da pessoa retratada.
Por fim, lembramos que crianças apenas podem ser fotografadas ou filmadas se os responsáveis tiverem autorizado, preferencialmente por escrito, e tais imagens devem ser usadas de forma comedida, evitando contextos vexatórios ou de alta exposição.
Foto de britt gaiser na Unsplash
[1] Vale observar que existem algumas situações nas quais o uso de uma obra protegida por direitos autorais não requer a autorização do titular de direitos. São as chamadas “limitações e exceções de direitos autorais”, previstas nos arts. 46 a 48 da Lei de Direitos Autorais. Essas exceções devem ser utilizadas com parcimônia e de acordo com a orientação de profissionais jurídicos especializados, pois envolvem a interpretação e aplicação da legislação – que, por vezes, é vaga e generalista – aos casos concretos, o que pode gerar riscos ao interessado.