A Lei Federal nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, apelidada de Lei de Direitos Autorais ou simplesmente LDA, é conhecida por ser uma lei que já nasceu velha, tendo em vista as grandes inovações tecnológicas que surgiram logo após à sua aprovação (como a própria internet). Por isso, desde a sua aprovação, muito se discute a possibilidade de se realizar uma reforma na LDA.
Em 2007, o então Ministro da Cultura Gilberto Gil lançou o Fórum Nacional do Direito Autoral, que tinha como intuito promover debates com a sociedade sobre a política e a legislação brasileira de direitos autorais. Neste contexto, foram realizadas duas consultas públicas pela internet sobre minutas de alterações da LDA, mas a reforma nunca foi para frente.
A discussão foi reacendida em 2019, quando a Deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ) apresentou o Projeto de Lei n° 2370/2019, cujo texto original propunha a alteração de quarenta artigos e a inclusão de trinta novos na LDA que, como indica na justificativa, buscavam sanar lacunas, corrigir injustiças e aprimorar a redação da lei.
O projeto se dividia em três grupos: (i) correção de erros conceituais, (ii) inclusão de novos dispositivos para resolver casos de omissão da lei – como a falta de regulamentação sobre as obras órfãs[1] – ou ampliar disposições que são abordados de forma insuficiente ou desequilibrada – como as limitações e exceções de direitos[2] –, e (iii) harmonização da legislação com o restante do ordenamento jurídico, principalmente com os direitos fundamentais e sociais da Constituição Federal.
Porém, mais uma vez, o projeto ficou estacionado e a reforma não foi realizada.
Esse cenário mudou com o surgimento do Projeto de Lei nº 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, apresentada ao Senado como forma de combater a disseminação de notícias falsas após as eleições de 2018.
O que o PL das Fake News tem a ver com direitos autorais?
Em abril de 2023, o Deputado Orlando Silva (PCdoB/SP) propôs texto substitutivo ao PL das Fake News introduzindo o direito de remuneração de artistas pela disponibilização de obras autorais por provedores, incluindo serviços de streaming. Dada a sensibilidade e importância desta questão para o setor artístico, o texto ganhou a simpatia e o apoio de autores e artistas.
Porém, dadas as diferenças do assunto com os temas abordados no PL das Fake News, optou-se por transportar as disposições sobre direitos autorais para o PL 2370/2019. Com isso, reacendeu-se, mais uma vez, a discussão de reforma da LDA.
Neste contexto, em agosto, foi apresentado texto substitutivo ao PL da LDA, alterando toda sua estrutura e seu propósito, com a retirada de questões essenciais para o cotidiano de instituições culturais e outros agentes do setor cultural e acrescendo as previsões específicas trazidas no substitutivo do Deputado Orlando Silva.
Na sua nova formulação, o PL 2370/2019 aborda principalmente o direito de remuneração equitativa de artistas e autores, também chamado de direito de remuneração obrigatória. Esse é um direito já reconhecido na União Europeia e em alguns países da América Latina, como Chile e Colômbia, cujo intuito é garantir o equilíbrio negocial entre produtores e artistas ao assegurar o repasse de parte dos lucros obtidos através da exploração comercial da obra[3].
Por que esta discussão se deu em meio a um debate sobre regulação da internet?
Atualmente, quase todos os conteúdos produzidos e circulados na internet são considerados pelo direito como obras audiovisuais[4] e, por isso, deveriam ser fonte de remuneração para os seus criadores.
Logo, esta alteração legal obrigaria as plataformas a pagarem para criadores de conteúdos audiovisuais e musicais, além de jornalistas, pela circulação das obras nas plataformas, mesmo que essa circulação se dê através da publicação de um terceiro, como um usuário de redes sociais[5].
Essa mudança é, em geral, bem vista pela classe artística, porém, caso o substitutivo seja aprovado, serão enterradas diversas questões importantes que eram trazidas no texto original do PL, por exemplo:
- Regulamentação sobre o tratamento das obras órfãs;
- Diferenciação de licenças e cessões de direitos patrimoniais, bem como as regras de aplicação;
- Ampliação das limitações e exceções para fins educativos, de conservação e preservação, e exibição de obras em exposições e mostras de arte;
- Regulamentação sobre obras decorrentes de contrato de trabalho.
Além disso, o texto não resolve todas as questões relacionadas à remuneração dos artistas, uma vez que pode criar um desequilíbrio ainda maior dentro do mercado, principalmente com a criação de um novo direito conexo para os produtores de audiovisual, que, ao adicionar uma nova camada de titularidade original para empresas, reduz o espaço e papel dos criadores e artistas.
Por isso, é muito importante que o PL 2370/2019 seja amplamente debatido e revisado pela sociedade, artistas, instituições culturais e de memória, bem como com todos aqueles que possam ser diretamente afetados pelas suas alterações, antes que ele seja aprovado.
Foto de Giammarco Boscaro na Unsplash.
[1] Obras órfãs são aquelas cujo autor ou titular não é conhecido ou não foi localizado. Atualmente, a legislação brasileira de direitos autorais é muito vaga no que se refere ao tratamento das obras órfãs, de modo que a ausência de disposições claras sobre o assunto gera insegurança às instituições culturais e de memória e, consequentemente, grande receio no momento de expor e divulgar obras órfãs que fazem parte de seus acervos.
[2] São chamadas de limitações e exceções os usos permitidos sem a necessidade de autorização ou remuneração do autor ou detentor de direitos, estando previstos nos art. 46, 47 e 48 da LDA. No entanto, a legislação brasileira é bastante limitadora e, na contramão de leis de dezenas de países, não há hoje uma exceção voltada às necessidades cotidianas de instituições culturais ou de memória.
[3] Para saber mais sobre as questões e discussões envolvidas ao direito de remuneração equitativa, recomendamos:
IBDAutoral. Direito Autoral em Debate: Aspectos legais e conceituais do PL 2370 e seu substitutivo. 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/live/dhfxS60IocE?si=Y-NozvTd-IBeV7KH.
D’HANENS, Laetitia; SILVA, Gabriela Lima. O Impacto do “PL das fake news” nos direitos autorais”. Migalhas, 2023. https://www.migalhas.com.br/depeso/386066/o-impacto-do-pl-das-fake-news-nos-direitos-autorais.
[4] Essa classificativa pode ser questionada: a LDA de 1973 diferenciava videogramas e obras audiovisuais, sendo o primeiro mais apropriado para vídeos amadores e sem pretensões artísticas. Há alguns juristas que defendem a classificação de pequenos vídeos caseiros, como TikTok ou Instagram Reels, primariamente como videogramas e não como obra audiovisual, porém, essa posição é minoritária.
[5] Estariam excluídas dessa obrigação as plataformas de troca de mensagens privadas, mesmo as que tenham armazenamento das mensagens na nuvem.