Quando queremos utilizar uma obra intelectual (música, texto, vídeo, pintura e assim por diante), a regra geral é que precisamos entrar em contato com quem detém os direitos autorais – o autor, seus herdeiros, uma instituição que gerencia a carreira daquele autor etc. Também é essencial conhecer detalhes sobre a vida do autor para determinar se a obra já está, ou não, em domínio público.
Mas nem sempre é fácil conseguir essas informações. Às vezes, não sabemos quem é o autor ou com quem estão os direitos. Mesmo que a gente saiba quem é, pode ser difícil falar com a pessoa ou descobrir quem são seus herdeiros.
Na grande maioria dos casos, quando museus, bibliotecas e outras instituições de memória montaram seus acervos, não obtiveram uma documentação completa por meio da qual fosse possível identificar, com clareza, quem são os autores ou titulares de direitos sobre as obras da coleção. Isso faz com que essas instituições frequentemente se deparem com obras chamadas de “órfãs”. Uma obra será considerada órfã quando não sabemos quem é – ou onde está – seu autor ou titular de direitos.
Uma pesquisa divulgada no ano passado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (2023, p. 74) mostrou que 19% dos museus brasileiros têm em seus acervos obras com proteção autoral desconhecida, e 12% abrigam obras órfãs. Situações em que equipes de acervo sabem quem é o autor de uma obra, mas não conseguem encontrar informações sobre os herdeiros do artista, mesmo depois de pesquisar muito, ou em que organizadores de exposições querem utilizar fotografias antigas encontradas nos arquivos pessoais de alguém, mas não sabem quem é o autor, são mais comuns do que imaginamos no cotidiano de instituições culturais.
Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos e na União Europeia, a legislação brasileira não oferece padrões claros para lidar com esse tipo de obra. A Lei de Direitos Autorais tem previsões esparsas sobre as obras anônimas ou pseudônimas (arts. 5º, VIII, “b”; 40 e 43), e o art. 45 ocupa-se de forma muito breve das obras “de autores falecidos que não tenham deixado sucessores” e daquelas “de autor desconhecido”, indicando simplesmente que pertencem ao domínio público.
No entanto, essas disposições não são suficientes para lidar com a complexidade do problema. A lei não aborda situações em que o titular de direitos (e não somente o autor) é desconhecido, ou quando sabemos quem é o autor ou titular, mas não conseguimos encontrá-lo por falta de informações. Também não há orientações sobre como os usuários de obras órfãs podem ter certeza de que não há herdeiros ou outros detentores dos direitos, nem sobre o que configuraria uma remuneração justa caso os titulares apareçam no futuro.
Na ausência de uma regulamentação específica sobre o assunto no Brasil, uma prática recomendada a fim de reduzir riscos jurídicos é a adoção do procedimento criado na União Europeia. A Diretiva 2012/28/EU exige a realização de uma pesquisa diligente por parte dos interessados antes de fazerem uso da obra desejada. Além de possibilitar que informações sobre a obra sejam eventualmente encontradas (se ainda está protegida por direitos autorais ou se entrou em domínio público; quem é seu autor, se está ainda vivo ou se faleceu; se falecido, com quem estão os direitos etc.), essa busca demonstrará o esforço e a boa-fé do interessado em resolver a questão de forma adequada.
Dicas para conduzir a pesquisa diligente:
- A pesquisa deve levar em conta contatos (pessoas que conheciam o autor ou sua família, museus e galerias que expuseram suas obras etc.), documentos (realizar pesquisas em Diários Oficiais, Imprensa Oficial, jornais de grande circulação, obituários de jornais, serviços de genealogia, dicionários de arte, Enciclopédia do Itaú Cultural, Google Arts & Culture etc.), e até mesmo processos judiciais de inventário do autor ou de herdeiros, caso existam.
- Se, após todo esse processo, as informações sobre a autoria ou titularidade da obra realmente não forem descobertas, entende-se que a obra é órfã.
- Em seguida, é preciso arquivar essa pesquisa (trocas de e-mails, de mensagens em aplicativos, capturas de telas, documentos etc.), montando um “dossiê” organizado e em ordem cronológica. Ao guardar conversas e documentos de cunho íntimo, deve-se ter a cautela de respeitar a privacidade das pessoas envolvidas, avaliando se há informações sensíveis que poderiam ser tarjadas ou anonimizadas.
- Recomenda-se estabelecer um prazo para que se realize novas buscas (por exemplo, a cada 5 anos), uma vez que novas informações podem aparecer ao longo do tempo.
- Nos materiais em que a obra for reproduzida, vale inserir um disclaimer (aviso) explicando a pesquisa feita, bem como oferecendo meios (e-mail, telefone etc.) para que o titular de direitos, ou qualquer outra pessoa que eventualmente tenha informações sobre a obra, possa entrar em contato.
- Caso o titular de direitos apareça em algum momento e peça uma remuneração, recomenda-se negociá-la em valor justo e para usos futuros (e não retroativos), pois, justamente pelo esforço empregado na busca diligente, houve boa-fé na utilização.
- Importante ter em mente que a obra pode conter outras “camadas” de direitos que precisam ser analisadas – e eventualmente autorizadas – a fim de “liberar” a obra para reprodução e divulgação, como é o caso dos direitos de personalidade (imagem, voz, dados biográficos etc. de indivíduos). Por exemplo, após a condução da busca diligente, uma fotografia antiga pode ser considerada órfã sob a ótica do direito autoral. Contudo, nela pode existir a imagem de certas pessoas, que devem ter autorizado o uso de sua imagem. Mesma coisa para um texto no qual detalhes íntimos da vida de alguém são veiculados.
Foto de Jennie Razumnaya na Unsplash