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O polêmico registro dos direitos autorais de um baralho de Magic

Nesta semana, um fato curioso tem chamado a atenção tanto de fãs do jogo de cartas “Magic: the Gathering” quanto de profissionais do direito: o professor de física Robert Hovden obteve, do Escritório de Direitos Autorais dos EUA, um registro para o seu baralho pessoal de Magic.[1]

Para os não iniciados, Magic é um jogo de cartas colecionáveis, no qual dois ou mais jogadores criam baralhos personalizados e competem entre si. Assim, todo ano saem novas coleções e os jogadores podem montar baralhos a partir da sua própria escolha sobre quais cartas são mais interessantes de jogarem juntas. A Wizards of The Coast, empresa que produz o jogo, detém os direitos autorais sobre as cartas individuais.

Nesse caso, como Hovden conseguiu registrar o seu baralho? Acontece que, nos EUA, também podem ser protegidas por direitos autorais as compilações de materiais pré-existentes, quando a seleção e o arranjo dos seus elementos se der de forma original, ou seja, criativa.[2] O baralho de Hovden foi registrado dessa forma – como uma compilação de cartas.

Aqui no Brasil, também são protegidas compilações e outras obras que, pela seleção, organização ou disposição do seu conteúdo, são criações intelectuais.[3] O exemplo mais comum desse tipo de proteção fica por conta de organizadores de obras literárias, que condensam textos de diversos autores. Por analogia ao que aconteceu nos Estados Unidos, fica a dúvida se também no Brasil seria possível a proteção de baralhos.

Devem então os jogadores de Magic ficar alarmados com a notícia?

Os direitos autorais conferem ao autor exclusividade sobre a sua criação. Isso significa que, em tese, ele poderia proibir que outras pessoas utilizem seu baralho em eventos públicos, ou exigir pagamento pelo uso. Esse, porém, não parece ser a intenção de Hovden, que aparenta ter solicitado o registro mais como uma provocação, para testar os limites e contradições do direito de autor.[4] No fim das contas, o problema é que proteger baralhos com direito autoral restringe as opções de arranjo de cartas disponíveis para os jogadores em geral. Há o perigo de que, a partir de agora, baralhos de Magic (ou outros jogos de cartas, como Pokémon TCG e Yu-Gi-Oh!) se tornem objeto de ações judiciais. Isso pode se mostrar extremamente problemático para a cena competitiva de Magic, que envolve torneios profissionais e, até mesmo, um campeonato mundial.[5] Criadores de baralhos poderiam tentar impedir competidores de usar baralhos idênticos ou semelhantes aos seus, enquanto jogadores poderiam comprar licenças de baralhos para ganhar vantagem competitiva.

A ideia de que uma pessoa pode ter exclusividade sobre um único baralho não necessariamente casa também com práticas já enraizadas na comunidade de fãs de Magic. Listas de cartas e baralhos com alto desempenho em torneios são divulgados desde a década de 90, originalmente em revistas como a Dragão Brasil, e hoje em dia, em sites especializados.[6] Agora, jogadores do mundo todo montam, compartilham e comparam baralhos na rede.[7] Variantes de um mesmo baralho são criadas e aperfeiçoadas, dando origem a famílias (“arquétipos”) de baralhos com o mesmo esqueleto.

Por outro lado, o registro sozinho não significa necessariamente que o direito autoral em questão existe, uma vez que, se provocados, os tribunais estadunidenses poderiam negar a proteção. De fato, um dos requisitos para a proteção de uma obra, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, é o grau de originalidade. É verdade que há muita criatividade envolvida na construção de um baralho, o qual pode carregar muito da personalidade do seu criador.[8] Contudo, grande parte da criação de um baralho obedece a considerações funcionais: o jogador quer torná-lo o mais efetivo possível em um contexto de competição. Em resumo, um baralho é geralmente feito para vencer. Além disso, os baralhos sempre são produzidos a partir de um número limitado de cartas. Pelas próprias regras do jogo, as combinações possíveis de cartas – ainda que na casa dos milhares ou milhões – é finita. Logo: talvez a proteção autoral à organização esbarre na falta do critério de originalidade.

É claro que as repercussões desse registro podem ser bem menores do que nós imaginamos e, a princípio, não tendem a afetar os jogadores casuais, que jogam com seus amigos em casa (embora possam afetar os que usam plataformas digitais para isso).[9] Fica, porém, a seguinte pergunta: essa proteção é desejável?

 

Photo by Ryan Quintal on Unsplash.

 

[1] Registro nº TXu002262767. Ele pode ser encontrado em: https://cocatalog.loc.gov/cgi-bin/Pwebrecon.cgi?PAGE=sbSearch&SEQ=20210819154808&PID=KumyXmcbtTbHmuM6OTtcPrMjbmYeW.

[2] “The subject matter of copyright as specified by section 102 includes compilations […].” 17 U.S. Code § 103(a). “A “compilation” is a work formed by the collection and assembling of preexisting materials or of data that are selected, coordinated, or arranged in such a way that the resulting work as a whole constitutes an original work of authorship.” 17 U.S. Code § 101.

[3] “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: […] XIII – as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.” Lei nº 9.610/1998, art. 7º, XIII.

[4] https://doctorow.medium.com/provocateur-copyrights-a-magic-the-gathering-deck-d55e67f59e13.

[5] https://www.magic.gg/.

[6] Um exemplo é: https://mtgtop8.com/.

[7] São algumas plataformas de montagem, compartilhamento e otimização de decks: https://www.ligamagic.com.br/; https://www.archidekt.com/. https://tappedout.net/. https://edhrec.com/.

[8] Patrick Chapin traz um breve histórico de baralhos inovadores e dos seus criadores: https://articles.starcitygames.com/articles/innovations-a-history-of-the-best-decks-from-the-first-17-years-of-magic/.

[9] https://mtgazone.com/for-the-first-time-ever-a-magic-the-gathering-deck-has-been-copyrighted/.

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