O aplicativo “Lensa” ganhou fama recente com sua funcionalidade de criação de ilustrações a partir das fotografias de seus usuários. Ao mesmo tempo, reacendeu uma polêmica sobre os limites éticos e legais do uso de inteligência artificial e do aproveitamento de obras já existentes nesse tipo de programa.
Para os que ainda não estão familiarizados, o aplicativo recorre a bancos de imagens na internet para “aprender” e “se inspirar” na criação de ilustrações (os avatares), que serão fornecidas para os usuários. Neste caso, argumenta-se que a inteligência artificial não estaria utilizando diretamente as obras.
Porém, já surgiram diversas acusações por parte dos artistas de que se trata sim de uma utilização não autorizada de seu trabalho. Segue um exemplo:
Devemos lembrar que na legislação de direitos autorais (e copyright) em diversos países do mundo, cabe sempre ao autor o direito de exclusividade sobre a utilização e exploração de sua obra. Em outras palavras, é o artista que decide sobre as formas de aproveitamento de sua criação.
A consequência dessa regra é que qualquer pessoa, empresa, instituição ou outro interessado em usar esse trabalho deverá sempre pedir a autorização ao artista (mesmo que este tenha disponibilizado sua obra na internet) [1]. Vale transcrever aqui um trecho de nossa lei de direitos autorais (Lei n.º 9.619/98) para esclarecer o assunto:
“Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
I – a reprodução parcial ou integral;
III – a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;
VIII – a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante: […]
IX – a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;
X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.“
Assim sendo, por um lado, é defensável dizer que a utilização de obras no aplicativo devem sim ser autorizadas pelos artistas. Se acatarmos esse argumento, o aplicativo também deveria garantir outros direitos previstos em lei para os artistas como o direito ao crédito. Note-se que a lei não cria uma exceção para usos sem fins lucrativos, de modo que mesmo que o aplicativo não cobrasse, a autorização ainda seria devida.
Por outro lado, também é possível argumentar que a inteligência artificial apenas se inspira nos trabalhos disponibilizados na internet. De fato, não existe nenhuma proibição legal para a inspiração ou reprodução de estilos já desenvolvidos por terceiros. Basta pensar em quantos artistas na história se inspiraram e até reproduziram o “estilo” de outros sem que isso configurasse alguma violação de direito.
O problema é quando o aplicativo começa a transpor elementos de pinturas e ilustrações já existentes, ou seja, quando há uma reprodução (ainda que parcial), fazendo assim uma espécie de derivação do trabalho. É justamente nesta zona cinzenta que está o conflito e a dificuldade de se diferenciar uma inspiração do plágio/uso não autorizado.
Além das questões envolvendo direitos autorais, uma outra discussão também poderia ocorrer no âmbito do instituto jurídico da “concorrência desleal“. Simplificando bastante esse conceito, a legislação brasileira tenta proibir que agentes econômicos possam usar indevidamente ativos de outros no mercado de modo a “pegar carona” ou “enganar” clientes – conforme artigo 195 da Lei n.º 9.279/96. Desse modo, o aproveitamento das obras na internet pelo aplicativo talvez pudesse ser considerada como uma forma de prática de concorrência desleal, não apenas com os artistas, mas com os próprios banco de imagens, a depender das funcionalidades oferecidas. A título de lembrança e curiosidade, esse tema foi o grande tópico do processo envolvendo a Globo e SBT na disputa “Big Brother x Casa dos Artistas”.
Saindo da esfera jurídica, temos ainda toda a discussão ética envolvendo o uso do aplicativo: Será que os artistas não deveriam ser creditados em toda circunstância? É razoável o aproveitamento em massa de trabalhos por uma única empresa e sua inteligência artificial? Será que esse tipo de aplicativo não acaba desestimulando a encomenda de trabalhos com ilustradores? O aplicativo democratiza o acesso à arte personalizada para o público em geral? Estas são apenas algumas das possíveis questões envolvendo o tema…
[1] O artista pode disponibilizar sua obra em uma licença aberta de uso como o Creative Commons. Porém, devemos trabalhar sempre com a regra e não a exceção.