A Lei n.º 13.653/18, que regulamenta a profissão do arqueólogo, trouxe algumas disposições a respeito da propriedade intelectual sobre projetos que merecem ser analisadas à luz da Lei de Direitos Autorais propriamente dita (“LDA” ou “Lei n.º 9.610/98”). Isso é necessário para evitar potenciais confusões a respeito do texto legal.
O artigo 10 da Lei n.º 13.653/18 diz o seguinte: “Os direitos de autoria de plano, projeto ou programa de Arqueologia são do profissional que o elaborar.” Há duas reflexões importantes a respeito desse dispositivo.
Em primeiro lugar, é evidente que o autor é aquele cria de fato o plano, projeto ou programa – em consonância com o artigo 6º da LDA, segundo o qual: “Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.” Ou seja, é quem escreve o documento de acordo com seu estilo e concepção técnica/estética. O arqueólogo é o que denominamos no direito de “titular originário” dos direitos autorais.
Isso não significa que os direitos patrimoniais de autor, que são os direitos de utilizar, explorar e dispor do plano, projeto ou projeto, não possam ser cedidos (doados ou vendidos, por exemplo) para terceiros. Assim, se uma empresa contrata um arqueólogo para um projeto, ainda que esse profissional seja o primeiro “dono” dos direitos patrimoniais de autor (titular originário), um contrato pode regulamentar a transferência dessa parcela de direitos ao contratante. Isso não viola nenhuma legislação e não faz com que o arqueólogo perca os seus direitos morais de autor (como o direito ao crédito).
É importante esclarecer que essa relação de titularidade de direitos autorais nada tem a ver com a responsabilidade do projeto perante órgãos públicos. São duas situações distintas. Uma coisa é a relação que se estabelece entre arqueólogo, responsável pelo projeto e a Administração, outra é o regime de direitos autorais sobre o documento, que pode ser livremente negociado em contrato.
Ademais, precisamos entender se “plano, projeto ou programa de Arqueologia” são realmente criações protegidas pelos direitos autorais.
Afinal, a LDA prevê que “Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: as idéias [e os] projetos […] como tais” (artigo 8º, inciso I). Por outro lado, reconhece como obras protegidas as “criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: […] os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência“. Como equalizar então essas disposições?
Ao nosso ver, tudo depende da maneira como esse plano, projeto ou programa foi concebido.
Para ser protegido pelos direitos autorais, a criação deve ter um mínimo de originalidade, que diz respeito à maneira pela qual o autor se manifesta (a forma como escreve, o modo como organiza as ideias, o estilo, o método de organização do texto, entre outros fatores). A questão não é verificar se os dados/conteúdo presentes no documento são inéditos. Originalidade diz respeito à forma de escrita do autor.
No caso, nos parece que o plano, projeto ou programa de arqueologia não receberão proteção se forem apenas um conjunto de ideias, de intenções de pesquisa, ou seja, uma proposta mais genérica de trabalho ou de sistematização de informações. Por esse motivo, seria desejável que o documento tivesse algum grau de detalhamento. Ainda que “tamanho” ou “aprofundamento” não seja um requisito legal em si, defendemos que isso irá ajudar na identificação de uma verdadeira autoria sobre a criação.
Parênteses importantes: os dados em si não são protegidos por direitos autorais. Nos termos da Lei n.º 9.610/98: “No domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais campos da propriedade imaterial.” (artigo 7º, § 3º). Isso significa que outras pessoas podem aproveitar as descobertas indicadas do projeto em suas pesquisas, trabalhos acadêmicos e assim por diante – sem prejuízo da citação e atribuição de créditos evidentemente.
A segunda disposição da Lei n.º 13.653/18 que trata do tema prevê que: “Quando a concepção geral que caracteriza plano, projeto ou programa for elaborada em conjunto por profissionais legalmente habilitados, todos serão considerados coautores do plano, projeto ou programa, com direitos e deveres correspondentes.” (Art. 12.). Esse texto tem alguns problemas relacionados ao regime jurídico geral dos direitos autorais.
Em primeiro lugar, a coautoria decorre de uma situação de fato e não formal; mais precisamente, a coautoria é atribuída para aqueles que participam da criação da obra na prática e não depende dos profissionais estarem “legalmente habilitados“. Aqui parece haver uma confusão da Lei n.º 13.653/18 em regulamentar o exercício da profissão e a titularidade de direitos. Por conseguinte, não arqueólogos podem sim ser autores de planos, projetos e programas de arquitetura (falando aqui em termos da propriedade intelectual).
Além disso, se a coautoria depende dessa participação, não basta que os profissionais estejam apenas “envolvidos” no projeto. A própria lei de direitos autorais prevê, por exemplo, a figura do colaborador (como um revisor ou pesquisador assistente) que não chega contribuir com a criação em si. Veja-se o texto do parágrafo primeiro do artigo 15 da Lei n.º 9.610/98: “Não se considera co-autor quem simplesmente auxiliou o autor na produção da obra literária, artística ou científica, revendo-a, atualizando-a, bem como fiscalizando ou dirigindo sua edição ou apresentação por qualquer meio.”
Nesse sentido, o texto do artigo 12 da Lei n.º 13.653/18 pode trazer confusões pela falta de rigor técnico na redação e até poderia ter sua constitucionalidade questionada em sede judicial.
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