No dia-a-dia de instituições culturais, é comum nos depararmos com diferentes maneiras de produzir, expor e circular criações artísticas. Apesar de obras de arte serem comumente entendidas como trabalhos únicos e inéditos, algumas modalidades artísticas não se encaixam neste conceito. É o caso, por exemplo, dos múltiplos.
Suas origens podem ser traçadas às formas mais tradicionais de impressão, como xilogravura ou serigrafia, e a movimentos artísticos e ideológicos, como o Arts & Crafts Movement da Inglaterra no final do século XIX. Atualmente, os múltiplos estão presentes nos acervos de diversas instituições, muitas das quais têm promovido exposições para traçar as suas histórias e seus principais expoentes.[1]
Mas o que são os múltiplos?
Os múltiplos são obras de arte que, em razão da técnica utilizada, permitem a reprodução em larga escala.[2] Assim, múltiplos não são únicos ou inéditos – pelo contrário! Nessa categoria podem estar, como exemplo, as gravuras, como xilogravuras ou serigrafias, as fotografias, os atuais prints da arte digital, e até mesmo esculturas. Nesses casos, o artista produz uma matriz, um protótipo, um projeto da obra, ou fornece instruções para a sua execução.
Com isso, notamos que múltiplos são caracterizados pela disponibilidade. Diferente de obras únicas, o fato de existir mais de um objeto com as mesmas características e dimensões contribui para que os múltiplos normalmente tenham um preço mais acessível. Assim, podem ser adquiridos por públicos mais diversos e são hoje bastante utilizados como uma ferramenta para ampliar o acesso ao mercado de arte.
Essa era a proposta da Multiples Inc., uma empresa que funcionou em Nova Iorque entre 1966 e 1992. Colaborando com artistas renomados, como Lichtenstein e Andy Warhol, utilizava o trabalho de fornecedores e fábricas não especializadas para criar obras de arte que eram, então, vendidas a preços muito abaixo daqueles vistos nas galerias. A atuação da Multiples Inc. gerou uma forte associação, no mundo da arte, entre o conceito de múltiplos e a estética Pop Art. Dá para citar também os prints do artista inglês Banksy, vendidos pela sua equipe por 38 Libras Esterlinas no Central Park de Nova Iorque, por mais que valham, nos mercados especializados, centenas de milhares de Libras Esterlinas.
Quais cuidados devemos ter ao lidar com múltiplos?
Considerando a popularização dos múltiplos nas últimas décadas, é de alta relevância que as instituições culturais que tenham, em seus acervos, obras de arte dessa natureza reflitam sobre como se portar frente à uma obra que não é singular, bem como sobre os cuidados jurídicos que devem ser tomados.
Do ponto de vista de direitos autorais, o múltiplo deve ser tratado como qualquer outra obra no acervo da instituição. Logo, para reproduzi-lo em catálogos, materiais gráficos ou mesmo em produtos, é imprescindível a autorização por parte do titular de direitos autorais patrimoniais, que pode ser o artista, seus herdeiros ou terceiros que eventualmente tenham adquirido esses direitos. Essa autorização também é necessária se a instituição desejar fazer uma nova tiragem daquela obra a partir do plano, protótipo ou matriz criado pelo artista.
Além disso, podemos mencionar alguns cuidados adicionais que devem ser tomados por instituições interessadas em adquirir ou encomendar múltiplos:
- É importante que a instituição e o artista definam quantos exemplares poderão ser impressos em cada tiragem da obra, bem como se dará a destinação das Provas de Artista e das Hors Commerce[3];
- Definir as especificações técnicas da tiragem (materiais usados, etapas da produção, entre outras) e o responsável pelos custos;
- Garantir a autenticidade do múltiplo; e
- No caso de obra encomendada, se haverá ou não exclusividade na confecção, uso ou comercialização dos múltiplos.
A fim de que a instituição fique segura ao longo de todo o processo, recomendamos que todas essas questões sejam registradas em um contrato escrito. Para elaborar esse documento, é importante contar com apoio jurídico especializado, que poderá adaptar o documento às particularidades de cada caso.
Foto de Lucy Francesca Yanamango Veliz na Unsplash
[1] São exemplos a exposição “The Small Utopia. Ars Multiplicata” da Fondazione Prada, em Veneza; e a exposição “Multiples Inc.” na Marian Goodman Gallery, em Nova Iorque.
[2] Adotamos a definição da editora de artes Phaidon (“Multiples”. Phaidon Dictionary of Twentieth-century Art, 1973. Phaidon Press Limited). Outras informações sobre o conceito de múltiplos de obras de arte podem ser encontradas em: EDITORES DA ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Múltiplo. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3806/multiplo. Acesso em: 9 out. 2023; ATTIÉ, F. Obras de arte únicas, múltiplas e seriadas. Disponível em: https://www.zippergaleria.com.br/blog/51-obras-de-arte-unicas-multiplas-e-seriadas-sera-que-estou-vendo-a-unica-versao-dessa/. Acesso em: 9 out. 2023; e TATE MODERN. Multiple. Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/art-terms/m/multiple#:~:text=Multiple%20refers%20to%20a%20series. Acesso em: 9 out. 2023.
[3] Hors Commerce são exemplares que não podem ser vendidos, pois produzidos com a intenção de ser um tipo de brinde.