Semana passada entrou em vigor o novo Marco Regulatório do Fomento à Cultura (LEI Nº 14.903, DE 27 DE JUNHO DE 2024). A legislação decorre especialmente de um reconhecimento de que os instrumentos jurídicos disponíveis para a realização das políticas culturais não eram adequados aos próprios objetivos perseguidos. Nesse contexto, são criadas novas “ferramentas” para a Administração Pública que viabilizarão novas formas de contratação e apoio ao setor cultural.
A Lei também trouxe um novo tratamento para um dos assuntos mais sensíveis para o setor cultural: a prescrição de penalidades contra os responsáveis pelos projetos culturais. Vamos explicar nesse artigo o que isso significa de uma forma bem descomplicada.
Os proponentes de projetos culturais que recebem algum tipo de recurso público devem realizar comprovar perante a Administração Pública o cumprimento do objeto prometido (o projeto em si e seus objetivos), além da execução financeira (ou seja, que os recursos foram usados no projeto e de acordo com as normas). Isso é feito a partir da entrega da prestação de contas.
No entanto, o órgão responsável por essa análise pode demorar anos para avaliar essa prestação de contas (seja por excesso de projetos, falta de pessoal etc.). Isso traz uma enorme insegurança jurídica aos envolvidos.
A Administração poderia pedir a apresentação (ou reapresentação) de documentos antigos. Todavia, em função do tempo, alguns desses documentos podiam extraviavam ou se tornavam de difícil acesso/recuperação. Com efeito, o distanciamento entre o tempo do projeto e da avaliação acabava diminuindo a possibilidade defesa do proponente, uma vez que limitava a capacidade de recuperar documentos, obter declarações com evolvidos etc.
Essa demora também gera custos adicionais aos proponentes, que muitas precisam manter a cópia da prestação de contas em arquivos e/ou servidores externos. Aliás, a esse respeito, ficou famoso o caso da Agência Nacional de Cinema que chegou a solicitar a digitalização de prestações de contas já apresentadas – gerando novos custos com obrigações burocráticas que já tinham sido cumpridas.
Agora, o Marco Regulatório torna esse procedimento mais transparente e seguro, uma vez que fixa o seguinte: “Artigo 18. […] § 3º A documentação relativa ao cumprimento do objeto e à execução financeira do termo de execução cultural deverá ser mantida pelo agente cultural pelo prazo de 5 (cinco) anos, contado do fim da vigência do instrumento. § 4º Expirado o prazo referido no § 3º deste artigo sem que a administração pública tenha proferido a decisão referida no § 1º do art. 21 desta Lei, consideram-se aprovadas as contas, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, de fraude ou de simulação.“
Mas a Lei vai além e prevê também um prazo prescricional do poder punitivo do Estado, ou seja, um prazo para que a Administração Pública efetivamente aplique as penalidades contra os proponentes por alguma eventual irregularidade. Esse tema também gerava grandes dúvidas e insegurança jurídica, uma vez que essa penalidade poderia surgir justamente em decorrência da demora na avaliação da prestação de contas como mencionado acima.
Desse modo, o Marco trouxe o seguinte dispositivo (para os termos de execução cultural): “Art. 21. […] § 8º Nos casos em que for determinada a devolução de recursos ou o pagamento de multa, a administração pública deverá exercer sua pretensão de ressarcimento ao erário no prazo de 5 (cinco) anos, contado da data do trânsito em julgado na esfera administrativa, sob pena de prescrição.”
A grande dúvida que ainda permanece é: e os projetos já em andamento ou com prestação de contas pendente de análise?
Na verdade, a aplicação de prazo de guarda de documentos e de prescrição já existia antes no Marco Regulatório do Fomento. Contudo, o seu reconhecimento na instância administrativa dependia muito do órgão em questão e, frequentemente, era necessário recorrer ao Poder Judiciário.
A opção da nova lei foi estabelecer uma regra de transição, que permite que a Administração pública avalie a aplicabilidade da norma a partir do seu próprio juízo, podendo firmar um aditivo nos instrumentos vigentes ou aplicar as novas regras de forma subsidiária (em alguns temas, mas não sobre a prescrição em si):
“Art. 43. Os instrumentos de fomento cultural existentes na data de entrada em vigor desta Lei permanecerão regidos pela legislação vigente ao tempo de sua celebração, ressalvadas as seguintes hipóteses, a serem avaliadas em juízo de conveniência e oportunidade pela administração pública:
I – nos casos de instrumentos ainda vigentes, a administração pública poderá propor: a) a celebração de termo aditivo com a indicação da aplicação subsidiária de regras ou de procedimentos previstos nesta Lei, quando considerar essa medida conveniente e oportuna para a efetividade das políticas públicas culturais; ou b) a substituição do instrumento vigente por um novo instrumento previsto no art. 4º desta Lei, para sujeição ao regime próprio de fomento cultural disposto nesta Lei; e
II – nos casos de instrumentos com vigência encerrada, mas que estejam ainda em fase de apresentação ou de análise de prestação de contas, poderá haver aplicação subsidiária dos dispositivos desta Lei relativos aos seguintes aspectos: a) possibilidade de ressarcimento ao erário por meio de ações compensatórias de interesse público, a critério da administração pública; b) possibilidade de o parecer técnico e a decisão final referente à prestação de contas concluírem pela aprovação das contas quando comprovado o integral cumprimento do objeto, sem necessidade de análise da documentação financeira; c) sistemática de apuração de valores a serem ressarcidos ou de cálculo de multa; d) regras previstas nos §§ 3º e 4º do art. 18 desta Lei.“
Ainda é cedo para afirmar como será a aderência e aplicabilidade do artigo 43 na prática, mas é fato que o Marco Regulatório trouxe um enorme avanço ao tema. Agora, devemos aguardar o texto do Decreto que há de regulamentar a Lei e trazer algum detalhamento sobre tais dispositivos.
Foto de San Fermin Pamplona – Navarra na Unsplash