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Gestão Eletrônica de Processos – Da pilha física para a pilha digital

O desenvolvimento tecnológico em qualquer atividade humana busca satisfazer, ao menos, duas finalidades bem claras: (i) economicidade e (ii) celeridade. Ambas perspectivas de ordem econômica.

Quer um exemplo? Pense em quaisquer das grandes evoluções técnicas na história da humanidade e perceba que, toda a vez que um desenvolvimento acontece, ele provoca, pelo menos: (i) a diminuição de gastos (espaço físico, energia, moeda, matéria prima) e; (ii) a diminuição de tempo para a realização de uma atividade (que no fim das contas é gasto também, mas aqui relativo ao fator tempo).

A situação ideal, para que uma finalidade original seja preservada, se dá quando a ruptura trazida com a tecnologia não muda os fins desejados.[1]

Entretanto, um desenvolvimento tecnológico extremo, que obriga repensar a própria lógica e função original, traz questões quanto a real capacidade de adaptação à atividade modificada pela tecnologia. Mais difícil ainda é reconhecer se o “novo uso” que a tecnologia exige não traz uma reformulação da sociedade, a qual não seria aderente à atividade “nova” ou “inovada”.

Você diz: “Cara que loucura!”

Calma! Tem exemplo do que eu estou falando… e, sim, vamos chegar em Processo e em Direito.

Vamos usar como exemplo os carros, fazendo um paralelo com, olha ele aí, o Direito.

Tanto o carro quanto o Direito são tecnologias, para a finalidade às quais foram desenhadas, ligadas a necessidades humanas imemoriais. Um voltado à locomoção, o outro, à pacificação de crises sociais – desculpem a redução do significado do direito e também a redução do significado do automóvel que, sei, para os adoradores de cada qual pode significar um grande disparate.

O fato é que sempre tivemos a necessidade de nos locomover em razão de sobrevivência. A evolução dos meios de transporte, que pouco a pouco foram permitindo mais eficiência, não mudou a atividade da locomoção em si. Contudo, é claro que o desenvolvimento que faz o transporte mais célere e econômico teve o efeito colateral de atingir o meio social onde foi inserido. Exigindo, por sua conta, a adaptação da própria atividade ou a reformulação do meio social à inovação proporcionada pela tecnologia.

Veja, por exemplo, que o surgimento de veículos auto propulsores provocou uma modificação profunda na atividade até então existente (justamente no eixo velocidade e economia). A sociedade, ficou nítido, não estava preparada para tanto. Para além dos exemplos quanto a necessidade de semáforos e faixas de pedestres, isso para ficar só na linha do que viria ser chamado de automóvel, trago um, talvez, mais contundente.

Você já ouviu falar da Lei das Bandeiras Vermelhas ou os Locomotive Acts?

Na Inglaterra, durante a segunda metade do Século XIX, com o advento dos veículos auto propulsores, foram instituídas leis para regular os efeitos sociais da inovação tecnológica. Leis que, além de determinar a necessidade de emplacamento, registro, limites de velocidade, peso máximo dos automóveis, obrigaram que os veículos trouxessem uma pessoa andando à sua frente com uma bandeira vermelha para sinalizar a passagem do próprio veículo. Isso… Todo veículo auto propulsor deveria acompanhar e limitar a sua velocidade à de uma pessoa carregando bandeiras vermelhas que indicassem que um automóvel estava passando pela via.

A Lei das Bandeiras Vermelhas tem sido usada recorrentemente, pelos entusiastas do desenvolvimento tecnológico, como exemplo de que a norma, infelizmente, pode limitar a evolução. Um exemplo de que a Lei não poderia impedir que uma inovação levasse ao máximo a capacidade tecnológica. Olha como o tal do Direito aparece aí.

Hoje, tempo de grande questionamento sobre o automóvel particular como um meio de transporte adequado para o fluxo urbano, vale recolocar o exemplo das Bandeiras Vermelhas em outros termos. Assim, faço a seguinte pergunta: será que queremos, ou temos a capacidade de identificar, uma tecnologia que modifica uma atividade já afirmada e útil para/na sociedade?

A modificação que uma inovação tecnológica exige de uma atividade pode não ser tão adequada/interessante/compatível com a finalidade original. Por outro lado, a “adaptação” da finalidade original pode exigir, dentre outras coisas, a mudança de uma função essencial, passando, por exemplo, no plano do Direito, da razoável duração e da economicidade para a celeridade e a concentração simplificadora do Processo Judicial.

Explico…

Basta pensar que essa perspectiva cerca também a informatização do Direito, centro foco aqui na digitalização de atos e processos judiciais. É notório que, desde a distribuição de uma ação até a minúcia de cada ato procedimental, o processo digital pretende ser mais rápido e mais barato que o analógico. O processo eletrônico ocupa menos espaço nos cartórios, e quem já viu um cartório judicial sabe bem o que isso significa. Um cartório judicial é o cúmulo em termos de organização e de pilhas de papeis que precisam ser atentamente lidos, numerados, certificados e publicados.

Em mais de uma oportunidade, essa modificação de paradigma foi alvo de algumas considerações do próprio judiciário e da advocacia. Alguns pensadores chamam a atenção para o fato de que, quando a Constituição trata de uma razoável duração do processo, ela não fala necessariamente de celeridade processual; e, do mesmo modo, quando a Constituição fala de economicidade (no sentido de redução de custos, eficiência e acesso à justiça) ela não fala em concentração de atividades em prejuízo da qualidade na “distribuição de justiça”.

Essa maior economia e celeridade acopla-se, por exemplo, com a possibilidade de julgamento em lote; com a distribuição de um entendimento a vários processos similares; ou mesmo com a própria capacidade de identificação desses vários processos similares. Poderia listar aqui várias histórias interessantes de como o judiciário extinguiu uma massa ações, reputadamente idênticas, a partir de um entendimento que foi pacificado em um determinado tribunal. Ou de como um juiz tinha o poder, durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973, para extinguir outra infinidade de mesmas ações, reputadamente idênticas, com base em um artigo da Lei que autorizava a reprodução de um entendimento do magistrado quanto a improcedência do pedido.

Contudo, focar nesse ponto seria esquecer a parte que quero ressaltar aqui. Falo da imensa capacidade de gestão que a digitalização proporcionou ao cartório judicial. Sem medo de errar, podemos afirmar que a extinção de uma infinidade de processos segundo um entendimento do Juiz ou do Tribunal nada seria caso não fosse possível, como se disse linhas acima, ler, certificar, numerar e publicar além de praticar todas as mais diversas medidas cartoriais as quais o processo digital tornou mais céleres e econômicas. Isso sem contar uma afirmação que beira a obviedade. Trata-se do fato de que mais celeridade e mais economia têm como um dos efeitos lógicos a maior utilização do meio. Não espanta que o sistema processual venha criando mais e mais requisitos de entrada, ou melhor, válvulas de escape para essas demandas.

Assim, o que menos preocupa nesse cenário é o “empilhamento digital de processos” problema que o implemento tecnológico pode, sim, promover. Esse, não sejamos superficiais, é também um ponto sério. É evidente que, ao passo que o processo se digitaliza, ele ocupa menos espaço no cartório; processo digital – em HD, na nuvem ou qualquer outro lugar – não incomoda o escaninho do cartorário, isso pode ser associado ao prazo impróprio (ao contrário do advogado o Juiz não tem uma sanção pelo não cumprimento do prazo) e ao excesso de trabalho que o Judiciário experimenta, graças a busca cada vez mais constante de seus fundamentais préstimos à sociedade.

O que preocupa mais é justamente a modificação que o fenômeno processo pode sofrer com a sua digitalização e o implemento em celeridade e economicidade. O que realmente preocupa é que o processo digital seja, digamos, divergente da finalidade do “processo judicial analógico” com sua cadência e tempo original e com o peso sobre a mesa de uma pilha de documentos realmente importantes e que deverão ser lenta e atentamente lidos.

É pensar que a paulatina adaptação da sociedade a essa cadência do processo digital expresso e barato possa fazer com que as questões trazidas à apreciação do Poder Judiciário passem tão rápido como um carro veloz em uma auto estrada. Uma estrada cujo limite de velocidade já seja adaptado ao desenvolver de tanta celeridade processual. Onde as crises jurídicas extremamente pessoais individualizadas e tão ligadas à resolução dos conflitos particulares passem tão céleres e sejam tratadas de modo tão concentrado que nem permitam ao Magistrado ver a cor do bonde que passou.

Enfim, a celeridade e a economia de uma pilha digital de processos é como atirar-se ao fogo da evolução tecnológica, colocando em risco potencial a função distribuidora de justiça. Seria talvez o caso de, usando o próprio Direito, colocar algumas bandeiras à frente do processo para evitar que se atropele a justiça ou que, passando rápido sem uma duração razoável e sem um rito profundo e, ouso arriscar, custoso, deixe de agir para o fim que foi originalmente desejado.

[1] Claro que, em diversos casos – e os mais paradigmáticos, diga-se -, o implemento tecnológico é tão relevante que tornou possível fazer um “algo” que antes da tecnologia não era possível, mas não são esses os casos que quero tratar aqui.

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