2002 foi um ano que mudou a história do cinema com o lançamento de “Homem-Aranha”. O filme provou que filmes de super-heróis podiam ser lucrativos, faturando US$ 821 milhões (contra US$ 139 milhões de orçamento). Das 30 maiores bilheterias de todos os tempos, 11 são filmes advindos de personagens de histórias em quadrinhos, sendo que o topo da lista pertence a “Vingadores: Ultimato” (2019), faturamento de 2,79 bilhões de dólares. A ascensão desse império contém alguns bastidores interessantes na área de licenciamento de direitos autorais.
Você provavelmente sabe o que é ou pelo menos já viu o logo ao lado. A Marvel Comics é uma das maiores editoras de quadrinhos do mundo. Fundada em 1939 como Timely Comics, nos trouxe grandes histórias e personagens icônicos como o Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Homem-Aranha, os X-Men, Pantera Negra, dentre muitos outros. |
Em meados de 1990, por uma série de motivos, a empresa acaba declarando falência. No penoso processo de recuperação, a Marvel precisou aproveitar ao máximo seu principal ativo: os direitos de propriedade intelectual sobre seus personagens. É nesse contexto que surgem os primeiros filmes de super-herói da “nova geração”. O curioso é que, seja pela necessidade de liquidez da companhia, seja por ainda não se saber ao certo o potencial desse tipo de obra naquele momento, os direitos de adaptação cinematográfica foram vendidos por valores “irrisórios”, se comparados com os atuais padrões de mercado.
Vamos aos números. A 20th Century Fox adquiriu os direitos de adaptação dos X-Men por $2,6 milhões em 1993 (antes mesmo do processo de falência). Só o primeiro filme da franquia (2000) acabou faturando $ 296,3 em bilheteria. Os dois primeiros longas do Homem-Aranha (2002 e 2004) faturaram geraram US$1,6 bilhão de bilheteria, cabendo à Marvel “apenas” US$ 61 milhões, nem 4% do total.
Fato é que isso despertou a atenção e interesse da Marvel em desenvolver sua própria empreitada. À época, os direitos de adaptação cinematográfica de suas franquias mais populares já estavam licenciados para outros estúdios: o quarteto-fantástico e os mutantes de x-men estavam com a Fox, enquanto o homem-aranha e personagens a ele relacionados haviam sido comprados pela Sony:
A solução foi usar um personagem que, naquele momento, não estava entre os principais sucessos comerciais do catálogo da editora: o Homem de Ferro. O projeto, aliás, já existia desde os anos 90 mas nunca tinha sido efetivamente realizado. O filme foi um enorme sucesso, faturando US$ 585,1 milhões de bilheteria (contra US$ 140 milhões de orçamento) e, além de recuperar a carreira do ator Robert Downey Jr., iniciou a série de filmes “canônicos” e integrados dos cinemas – o chamado Marvel Cinematic Universe (MCU). Muito provavelmente, o desempenho incentivou a Disney a concretizar a compra da Marvel em 2009 por 4 bilhões de dólares.
É interessante observar que o acordo entre a 20th Century e Marvel parece ter algumas zonas cinzentas que permitiram com que personagens como o Mercúrio (Quicksilver) e a Feiticeira Escarlate (Scarlet Witch) fossem aproveitados em Vingadores e no MCU. Apesar de pertencerem ao universo dos X-Men, ambos também eram diretamente e estreitamente relacionados com os vingadores. A solução foi que tanto a Fox como a Disney poderiam utilizar os personagens em seus filmes, porém a última não poderia se valer do termo “mutantes”, em respeito ao contrato de licenciamento. Uma outra curiosidade jurídica: os responsáveis pelo filme Deadpool (Fox) queriam trocar os poderes da personagem Míssil e a Marvel, em paralelo, tinha interesse de usar o vilão Ego em Guardiões da Galáxia 2 (que estava licenciado como parte do Universo de Quarteto Fantástico). As partes resolveram então fazer um acordo de cavalheiros para “trocar” os usos (fonte). Esse tipo de questão tende a se dissolver no médio prazo após a compra do grupo Fox pela Disney – apesar dos contratos ainda estarem vigentes.
O Homem-Aranha também também tem sido objeto de acordos entre Sony e Disney. Desde a frustração de expectativas com o The Amazing Spider-Man 2 (2014), as partes passaram a negociar a participação do personagem no MCU – que se mostrou um sucesso. No final de 2019, os estúdios renovaram a parceria para a produção de novos filmes do Aranha dentro do mesmo “universo oficial”.
Quem já se deparou com cláusulas de cessão e licenciamento de direitos autorais e outros ativos de propriedade intelectual, especialmente no campo do audiovisual, sabe o quão longas e complexas estas costumam ser. E não é para menos… Até contratos milionários como estes citados deixam brechas e dúvidas sobre os limites, condições e regularidade do aproveitamento desses direitos.