Em co-autoria com Ivan Borges Sales
2020 tem sido um ano especialmente aterrador para o segmento da cultura e economia criativa. O setor já enfrentava dificuldades pela ausência de políticas públicas de apoio e fomento durante a atual gestão presidencial. A título de exemplo, no audiovisual, a Lei n.º 8.685/93 não teve seus incentivos fiscais renovados e o Fundo Setorial (FSA) encontra-se com os recursos congelados, o que afeta diretamente nossas capacidades de produção e, por consequência, a circulação de renda entre seus diversos profissionais. A pandemia do COVID-19 (coronavírus) veio agravar a crise, que não escolheu alvo. Cinemas, teatros, shows, museus, livrarias… Apesar de ser o terreno do simbólico, do intangível, a cultura não prescinde das relações presenciais, seja com o público, seja com aqueles a frente dos projetos.
Nos últimos dias, fui entrevistado por alguns veículos de comunicação (conferir matérias da TRIP e Matraca Cultural) e questionado por alguns clientes sobre a situação. Resolvi então compartilhar algumas reflexões a respeito do assunto.
Em primeiro lugar, acredito ser difícil prever em cifras e decimais qual será o impacto econômico no setor – ao menos nesse primeiro momento. Digo isso por alguns motivos. Acredito que há uma carência histórica de indicadores perenes sobre a economia da cultura. Isso nos leva a trabalhar com estimativas baseadas em números desatualizados – sem considerar as grandes variações existentes de relatório para relatório. Por exemplo, a FIRJAN estimou que os setores criativos eram 837,2 mil profissionais formalmente empregados em 2017, enquanto o extinto Ministério da Cultura já chegou a indicar 3,7 milhões de empregos (8,54% do total de empregados formais no Brasil) em 2010. Ambos assinalam, porém, que a economia criativa equivale a cerca de 2,5% do PIB. Todavia, ao mesmo tempo que há uma estagnação do consumo relacionado a eventos, pode haver algum acréscimo no consumo de bens que possam ser fruídos no lar (livros, filmes etc.). Parte do setor também está tentando conseguir apoio por plataformas de financiamento coletivo (crowdfunding) ou oferecer produtos e serviços digitais (como live patrocinada).
Os governos estaduais e municipais saíram na frente na tentativa de amenizar os prejuízos para área, anunciando editais para o desenvolvimento de projetos e apresentações não atreladas ao uso de espaços coletivos. A Secretaria Especial de Cultura do governo federal, por sua vez, anunciou algumas medidas para desburocratizar o uso de recursos no âmbito da Lei Rouanet. Evidentemente, todas as medidas podem ajudar, mas ainda parece pouco se imaginarmos o quão grave poderão ser os efeitos no curto e médio prazo. A ANCINE editou a Portaria n.º 151-E, com medidas específicas para a regulamentação do setor audiovisual.
Do ponto de vista jurídico, vale trazer algumas considerações importantes para os agentes São dúvidas comuns que tenho recebido escritório nesses tempos:
- Contratos em geral: O artigo 393 do Código Civil prevê que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.” No seu parágrafo único, dispõe que “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.” O COVID-19 e os decretos de quarentena impõem uma situação que não era possível prever, mudando o equilíbrio e a situação jurídica das partes contratantes. Isso significa que, a princípio, ninguém seria responsabilizado por descumprir um contrato em razão dos efeitos do COVID. A questão deve sempre ser analisada de acordo com o contrato e o caso concreto. A maioria das minutas coloca o caso fortuito e força maior como causa para a resolução do acordo. Porém, é preciso analisar diversos detalhes como pagamentos em aberto, reembolsos, situação de direitos autorais etc. Além dessa hipótese, a situação econômica também abre espaço para renegociação contratual em contratos de longo prazo, tais como empréstimos bancários. Assim, há razoável possibilidade de repactuação de taxas de juros e parcelamentos com instituições financeiras em geral.
- Aluguel: Com base no mesmo raciocínio acima, é possível buscar a renegociação do aluguel durante a quarentena através da carência total, do abatimento parcial do valor ou da suspensão para pagamento posterior. Apesar de termos algumas decisões judiciais reconhecendo a possibilidade de suspensão, especialmente no campo das locações comerciais, sugerimos que os locatários busquem uma resolução amigável com o locador. Aliás, é bom lembrar que qualquer análise de equilíbrio da relação deverá considerar também a situação do locador.
- Ingressos: No caso de ingressos de cinema, shows, eventos e apresentações culturais em geral, o consumidor pode optar pela devolução do valor ou troca por outro “equivalente”, se possível. Não obstante, dada a especificidade da situação, não se sabe se o Judiciário poderá atenuar ou reinterpretar as normas de defesa do consumidor, prevendo, por exemplo, um maior prazo para cumprimento das obrigações legais.
- Suspensão de tributos: Nos últimos dias, começaram a surgir algumas decisões reconhecendo a possibilidade de suspensão de tributos. No entanto, assim como no caso do aluguel, ainda não há como dizer qual será o posicionamento do Judiciário. De qualquer modo, existe razoável base normativa para pleitear essa suspensão (em especial, portarias e normativos fiscais para suspensão de cobrança de tributos em períodos de calamidade), ressaltando, ainda, que programas de benéficos para micro e pequenas empresas poderão ser implantados pelo Poder Público no futuro. Estamos atentos a esse fato e vamos manter todos informados na medida do possível.
- Prazos processuais: Os processos judiciais estão tramitando normalmente, sujeitando-se à escala de trabalho reduzida e à operação remota, tanto de juízes quanto de servidores. Todavia, os prazos de processos físicos e digitais estão suspensos no TJSP, ao menos até dia 16/04. Como novas ações são distribuídas digitalmente, é possível continuar com medidas judiciais mesmo durante a quarentena. Vale destacar que a obtenção de liminares tem sido dificultada a depender da matéria, pois os atendimentos presenciais nos fóruns estão restritos, sendo recebidos apenas pouco número de advogados por dia de operação. Isso não impede, no entanto, o ajuizamento da ação e a tentativa de obtenção das liminares por via remota em caso de necessidade.
- Projetos incentivados e fomentados: Recomendamos que os proponentes documentem todas as conversas e fatos que tenham alterado o andamento normal da execução. Tais materiais poderão ser utilizados nos processos administrativos nos respectivos órgãos.
Esse é um momento que exige muita criatividade, empatia e reflexão. Mais uma vez, somos forçados a repensar nossa relação com a cultura e com a classe criativa, inclusive os modelos contemporâneos de financiamento. A pauta cultural não é apenas daqueles que dela fazem ofício, mas sim de toda sociedade. Afinal, superar crises, quaisquer que sejam elas, também envolve se reinventar como ser humano. É preciso mudar a cultura. É preciso valorizar a cultura. Assim, ao final, mudarmos e valorizarmos nós mesmos.
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