Uma obra audiovisual – seja de longa metragem ou seriada – é composta por diversas criações autorais que surgem ao longo da produção ou que são a ela pré-existentes.
Algumas dessas obras são autônomas, podendo ser comercializadas independente da obra audiovisual, se assim permitirem os contratos envolvendo a criação. O Roteiro é um exemplo de obra autoral autônoma que pode ser desenvolvida tanto ao longo da produção, como ser pré-existente a ela. Isso significa que o produtor pode contratar os serviços de um roteirista para desenvolver seu projeto, ou pode ter um roteiro licenciado/cedido a seu favor por um roteirista que já o tenha desenvolvido anteriormente.
No entanto, o universo de possibilidades de como desenvolver um roteiro na cadeia produtiva audiovisual é mais complexo do que essas duas opções acima. Um roteiro de longa-metragem, por exemplo, sofre muitas mutações antes de chegar ao tratamento final e pode se alterar significativamente ao longo das etapas de produção e de pós-produção do filme. É comum que essas transformações e novos tratamentos contem com a participação de roteiristas colaboradores e também do diretor, podendo dificultar a definição de quem fica com qual crédito sobre o roteiro do filme.
Nossa Lei de Direitos Autorais[1] garante aos roteiristas e seus coautores o direito de serem creditados pelas suas participações criativas. Os chamados “colaboradores”, pela legislação, tais como como revisores de português ou assistentes de pesquisa, a princípio, não teriam reconhecimento de autoria, por não contribuírem criativamente com a obra. Mas, diante das transformações que o roteiro pode sofrer e da possibilidade de entrada de novos agentes em etapas diferentes do processo, a definição dos créditos pode ser uma dor de cabeça para os produtores.
Para exemplificar até que ponto a dificuldade de creditar roteiristas, co-roteirisstas e colaboradores pode chegar, vejamos a estratégia de “dual track development”[2] utilizada por alguns estúdios norte-americanos. Com a pressão de desenvolver boas histórias em um curto espaço de tempo, os estúdios contratam dois ou mais roteiristas para criarem simultaneamente e separadamente roteiros para algum projeto. Ao final, eles escolhem um deles para ser gravado. Roteiros de grandes produções, como “Mulher Maravilha” e “Aquaman”, seguiram esse caminho de desenvolvimento. Várias questões sobre os créditos surgem dessa estratégia: o autor do roteiro escolhido deve ser creditado como o único roteirista do filme? E se os produtores utilizarem cenas de um roteiro descartado, como creditar o roteirista que as desenvolveu?
Por estratégias de desenvolvimento como essa; pela confusão de nomes e funções existentes – coordenador, showrunner, script doctor, argumentista, dialoguista… –; pelos direitos (morais e patrimoniais) de autor de cada um dos criadores envolvidos que o produtor deve observar; e pelas diversas previsões contratuais e jurisdicionais, créditos já foram e ainda são motivos de várias brigas em Hollywood[3]. Para solucionar tais disputas, o WGA (Write´s Guild of America, o sindicado dos roteiristas nos EUA) criou regras específicas[4][5] e um sistema de arbitragem que decide sobre os litígios dessa natureza.
Para o autor, ter ou não seu nome nos créditos de um filme pode fazer uma grande diferença em sua carreira. Não apenas pelo prestígio e possibilidade de reconhecimento por meio de prêmios em festivais, mas também pelas vantagens financeiras. Se o WGA define que o seu nome configurará no IMDB como roteirista de uma obra audiovisual, você poderá receber uma quantia considerável em royalties residuais que o título de autor lhe dá direito[6]. Mas isso, claro, no mercado norte-americano.
No mercado nacional, o sistema de créditos – e a possibilidade do roteirista de obter receitas através de royalties – está diretamente vinculado a capacidade de negociação e barganha do criador na hora de assinar seu contrato com as produtoras. Além disso, a importação de funções estrangeiras e o uso de “contratos traduzidos” causa uma confusão ainda maior na hora de definir e entender os direitos de cada criador. Para amparar esse poder de barganha e para auxiliar as produtoras no momento de creditar e remunerar seus roteiristas, a ABRA (Associação Brasileira de Autores Roteiristas) delimitou uma tabela de preços e funções disponível em seu site[7]. No entanto, essas regras, em sua maioria, continuam se definindo principalmente no momento da negociação contratual.
Vale observar, porém, que na legislação de direitos autorais não há uma condicionante de porcentagem ou parcela de participação para ser considerado coautor e, logo, ter direito a remuneração e créditos. Em outras palavras, mesmo a pequena contribuição, desde que atenda aos requisitos para ser tutelada como obra (ou participação na obra), é suficiente para gerar a proteção de direitos. Isso aumenta ainda mais as controvérsias sobre contratos “importados” que fazem previsão de porcentagens para atribuir autoria.
Devemos ressaltar também que o direito ao crédito está inserido nos chamados direitos morais de autor, que permitem pouca (ou em alguns casos nenhuma) margem de negociação. A doutrina e jurisprudência aceitam a omissão do crédito em certos casos, mas e a renúncia? Com que parâmetros? Trata-se de outro aspecto a merecer amadurecimento.
Historicamente, o sistema de fomento e financiamento do mercado audiovisual nacional excluía a etapa de desenvolvimento. Só há alguns poucos anos, a falta de financiamento nesse momento inicial da cadeia produtiva de um filme entrou no debate público[8]. Assim, estratégias para reverter esse quadro, impulsionadas pela ANCINE, começaram a ser colocadas em prática. Isso fortalece essa classe profissional e proporciona um ambiente favorável para a tomada de iniciativas de defesa e gestão dos direitos dos autores[9].
O mercado está amadurecendo e criando uma consciência da importância e relevância do investimento na etapa de desenvolvimento de uma obra audiovisual. Ainda, a entrada de players internacionais no Brasil, como Netflix e Amazon, que tem como uma das principais estratégias de negócio o desenvolvimento de roteiros originais e bem construídos, impulsiona a qualificação dos nossos profissionais criativos. Creditá-los de maneira coerente com a participação de cada um é uma forma de valorizar os roteiristas e de assegurar que seus direitos sejam respeitados.
Foto por Pereanu Sebastian. In: Unsplash.
[1] LDA” Art. 17. É assegurada a proteção às participações individuais em obras coletivas.
- 1º Qualquer dos participantes, no exercício de seus direitos morais, poderá proibir que se indique ou anuncie seu nome na obra coletiva, sem prejuízo do direito de haver a remuneração contratada.”
“Art. 24. São direitos morais do autor:
I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;
II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;”
[2] https://www.hollywoodreporter.com/news/problems-writers-work-star-wars-831582
[3] https://uproxx.com/movies/screenwriting-controversies/
[4] http://origin.www.wga.org/contracts/credits/manuals
[5] https://www.screendaily.com/comment/the-cruel-reality-of-screenwriting-credits/5083347.article
[6] https://uproxx.com/movies/screenwriting-controversies/
[7] http://abra.art.br/tabela-de-precos/
[8] http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100135/tde-21122014-154706/pt-br.php
[9] Tais como o GEDAR (http://www.gedarbrasil.org/)