Em 2022 eu havia escrito um artigo sobre o Projeto de Lei que propunha um marco legal para a indústria de jogos eletrônicos com severas críticas ao seu texto. Felizmente, as associações setoriais conseguiram contribuir positivamente para a evolução desse texto ao longo de sua tramitação no Congresso.
Agora, o projeto foi aprovado e sancionado pelo presidente Lula, dando origem à LEI Nº 14.852, DE 3 DE MAIO DE 2024, que de fato implementa uma norma federal dedicada ao assunto.
Nesta ocasião, queremos comentar de forma bem objetiva os seus principais dispositivos:
“Art. 7º Consideram-se empresas desenvolvedoras de jogos eletrônicos as organizações empresariais e societárias que tenham por objetivo criar jogos eletrônicos, conforme definição do art. 5º desta Lei. […]
§ 2º Aos profissionais referidos no § 1º deste artigo aplica-se, no que couber, o disposto nas Leis Complementares nºs 123, de 14 de dezembro de 2006 (Lei do Simples Nacional), e 128, de 19 de dezembro de 2008, para fins de inscrição e constituição na forma de microempreendedor individual (MEI), de microempresas e de empresas de pequeno porte.
§ 4º A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) disponibilizará código específico na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) para empresas desenvolvedoras de jogos eletrônicos.“
Um dos problemas enfrentados pelos profissionais da área era justamente a dificuldade de se identificar como um agente econômico para o direito brasileiro. A criação de um CNAE certamente permitirá o mapeamento mais correto de empresas do setor, a criação de políticas públicas de financiamento direcionadas, entre outras ações focadas.
Além disso, vale destacar que agora as desenvolvedoras poderão se organizar como MEI e ser contempladas pelo SIMPLES nacional, facilitando assim a formalização como empresa, com um regime de tributação simplificado e menos oneroso.
“Art. 9º Consideram-se ferramentas essenciais ao desenvolvimento de jogos eletrônicos: […] § 2º O poder público regulamentará o desembaraço aduaneiro e as taxas de importação incidentes, com vistas a fomentar a inovação no setor de empresas desenvolvedoras de jogos eletrônicos.“
A Lei também prevê que o Estado deverá regulamentar formas de facilitar o desembaraço aduaneiro (procedimento administrativo para a entrada de um bem no país) e taxas de importação incidentes sobre ferramentas essenciais ao desenvolvimento de jogos eletrônicos. Essa previsão ainda dependerá de decreto e demais atos normativos infralegais para regulamentar o assunto e quais serão as condições que as empresas terão que cumprir para fazer jus ao benefício.
No curto prazo, a iniciativa é bem-vinda pois facilita o acesso ao ferramental necessário para viabilizar o desenvolvimento. Porém, pensando no interesse nacional e macroeconômico, seria interessante que o Marco trouxesse políticas voltadas à efetiva substituição de importações. Em outras palavras, o ideal é que o Brasil não fosse apenas um mero importador de equipamentos e tecnologias, mas pudesse desenvolver suas próprias ferramentas em prol do desenvolvimento econômico e da autonomia tecnológica do país – nos termos do próprio artigo 219 da Constituição Federal.
Aliás, vale dizer que essa importação de produtos e compra de softwares estrangeiros representa, evidentemente, a remessa de renda nacional para o exterior, ao invés de ser reinvestida na própria indústria local.
“Art. 11. Aplica-se às empresas desenvolvedoras de jogos eletrônicos, constituídas na forma do art. 7º desta Lei, o disposto na Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993.
Parágrafo único. Para fins do disposto no caput deste artigo, o investimento em desenvolvimento de jogos eletrônicos é considerado investimento em pesquisa, desenvolvimento, inovação e cultura.
Art. 12. O desenvolvimento de jogos eletrônicos é considerado segmento cultural para fins da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991.”
O Marco também coloca os jogos eletrônicos dentro do sistema de financiamento à cultura, notadamente, a Lei do Audiovisual e a Lei que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura, popularmente conhecido como “Lei Rouanet”. Mas o que significa isso afinal?
De um modo muito resumido, essas leis de incentivo funcionam da seguinte forma:
As desenvolvedoras poderão agora apresentar um projeto de jogo eletrônico para a ANCINE ou Ministério da Cultura (conforme a regulamentação). O órgão público irá fazer uma análise de viabilidade técnica e orçamentária, bem como de aderência aos fins da legislação.
Caso o projeto esteja adequado à lei, o projeto é aprovado e a desenvolvedora recebe uma autorização para captar recursos no mercado. Isso significa que o proponente vai até empresas e pessoas físicas pedindo para que estas apoiem o projeto.
As empresas e pessoas físicas que aportarem recursos no projeto (em uma conta bancárias específica) e poderão gozar de benefícios fiscais previstos nas respectivas legislações – além de eventuais contrapartidas combinadas com a desenvolvedora. Essas contrapartidas podem variar como unidades do produto, vagas em palestras e outros benefícios a depender de como o projeto foi inscrito.
Logo, não é o Estado que dá dinheiro diretamente às desenvolvedoras. A captação é feita no mercado e o apoiador auxilia o projeto em troca do incentivo fiscal e das contrapartidas!
A partir da captação, as desenvolvedoras devem executar o projeto conforme apresentado no órgão público (inclusive dentro do prazo legal) e prestar contas dos recursos públicos utilizados.
É importante destacar que as regras específicas de aproveitamento desses mecanismos de financiamento pelas desenvolvedoras ainda depende de uma melhor regulamentação. A lei do Audiovisual, por exemplo, prevê quatro mecanismos de financiamento distintos. No texto original aprovado, criava-se um novo mecanismo especificamente voltado aos games e que seria incorporado pelo artigo 3º-B. Este, porém, foi vetado no texto final da norma. Isso faz com que exista uma dúvida sobre a efetiva aplicabilidade da Lei do Audiovisual para os jogos eletrônicos.
A meu ver, incorporar os jogos eletrônicos nas duas normas também pode ser considerada como uma iniciativa positiva de curto prazo. Contudo, devemos lembrar as enormes insuficiências das leis de incentivo dentro de uma lógica de política cultural (concentração regional, concentração de recursos, entre outras questões). Do ponto de vista de estruturação de cadeia produtiva, as leis de incentivo podem até alocar alguma parcela de recursos voltados ao desenvolvimento, mas pouco irão contribuir para a superação de gargalos de mercado e para o reposicionamento do país no cenário global de distribuição e exploração de jogos.
“Art. 13. O Estado apoiará a formação de recursos humanos para a indústria de jogos eletrônicos, nos termos do ordenamento jurídico vigente. […] Art. 14. O poder público poderá estabelecer incentivos para a criação de espaços formativos de recursos humanos especializados para o setor de jogos eletrônicos.”
Com efeito, um dos pontos mais importantes na construção de uma indústria nacional está na formação de talentos humanos. Evidentemente, isso envolve não apenas os conhecimentos técnicos relacionados ao desenvolvimento de jogos, mas também conhecimentos de mercado, idiomas, noções de direito, administração e contabilidade, entre outras habilidades que serão fundamentais para o progresso profissional na área.
Não obstante, note-se que o Marco atribui uma responsabilidade sem criar instrumentos jurídicos ou políticas voltadas à concretização desse objetivo. Na prática, caberá aos governos federais, estaduais e municipais implementarem ações nesse sentido – o que evidentemente dependerá da visão estratégica, disponibilidade orçamentária e interesse de cada gestão.
“Art. 15. A concepção, o design, a gestão e o funcionamento dos jogos eletrônicos de acesso por crianças e adolescentes devem ter como parâmetro o superior interesse da criança e do adolescente, de acordo com a legislação vigente. […] Art. 16. Nos jogos eletrônicos direcionados a crianças e adolescentes que possibilitem a interação entre usuários por meio de mensagens de texto, áudio, vídeo ou troca de conteúdos, de forma síncrona ou assíncrona, deve ser garantida a aplicação de salvaguardas a direitos de crianças e adolescentes, com a disponibilização de, no mínimo: […] Art. 17. As ferramentas de compras dentro de jogos eletrônicos devem garantir, por padrão, a restrição da realização de compras e de transações comerciais por crianças, quando aplicável, de forma a garantir o consentimento dos responsáveis.”
A legislação trouxe também uma série de previsões relacionadas à proteção de menores. Tais dispositivos impõem novos pontos de atenção aos desenvolvedores, em especial, com publicidade encartada, os chamados “gachas” ou “loot boxes”, entre outras questões de natureza comercial e de proteção de conteúdo relacionados a crianças e adolescentes.
Comentários finais:
O Marco Legal é um importante reconhecimento da indústria de jogos eletrônicos dentro do ordenamento brasileiro e, por conseguinte, das políticas setoriais. O texto é um enorme avanço ao projeto de lei inicialmente apresentado, que continha uma série de imprecisões conceituais e uma agenda voltada apenas ao barateamento do consumo. Aqui, há de fato avanços positivos no regime jurídico-institucional do setor, com a criação de CNAEs próprios, formalização de desenvolvedores como MEI, tributação pelo SIMPLES, novas fontes de financiamento, sinalização de políticas voltadas à formação e proteção de crianças e adolescentes.
Porém, avalio que o Marco acabou sendo tímido na construção de um arcabouço voltado à efetiva promoção de uma indústria nacional. Evidentemente, temos ciência que existem enormes desafios políticos na criação de consensos necessários à aprovação de uma lei ideal.
Note-se que a Lei n.º 14.852/24 não cria políticas específicas para a formação de talentos humanos, promoção de hubs criativos, incentivo à inovação tecnológica em hardwares ou softwares, fomento à exportação de jogos nacionais. Tampouco são criados mecanismos de financiamento novos, ou ainda, mais condizentes com a realidade específica das empresas atuantes na área.
Também não foram criados quaisquer instrumentos de proteção ao mercado nacional em si, notadamente dominado pelas companhias estrangeiras. Vale lembrar que não se trata de um livre mercado do ideário liberal em que há competição igualitária entre os agentes. Muitas desenvolvedoras estrangeiras contam (ou contaram) com o apoio de seus Estados e, hoje, há uma enorme diferença de poder econômico entre o epicentro da indústria e os polos emergentes. É sempre bom lembrar, por exemplo, o caso sul-coreano, no qual o Estado foi decisivo para a promoção do desenvolvimento econômico e tecnológico do país, mudando a Coréia de patamar no cenário global.
A conquista de mercado pela produção nacional depende de sua capacidade de organização industrial voltada à promoção da inovação tecnológica e exportação de bens e serviços de alta complexidade e valor agregado. Isso está diretamente relacionado não apenas aos nossos talentos humanos ou empreendedorismo privado, mas ao papel do Estado nessa proteção e promoção do mercado – como manda de fato a Constituição Federal.
Frise-se que a indústria de jogos eletrônicos possui um imenso potencial para contribuir com a promoção do desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural do país. É verdade que temos diversos desafios no horizonte, inclusive, de manutenção de nossos talentos no próprio Brasil, ou mesmo, na área do desenvolvimento – uma vez que nem sempre a carreira torna-se viável sem a estrutura industrial necessária. Esperamos que o Marco seja um ponto de partida para novas iniciativas públicas e para um ciclo de progresso nos próximos anos.
PS: O Marco Legal ainda será regulamentado por Decreto. Decreto é um ato normativo produzido pelo presidente e que detalha algumas regras e formas de aplicação de uma lei. Depois disso, provavelmente outros órgãos também irão regulamentar o assunto como o Ministério da Cultura (na frente do financiamento) e Receita Federal (sobre tributação).