Compliance que vem do verbo inglês “to comply”, tem como primeira acepção a ideia de cumprir algo, ou seja, a atividade sucessiva de um processo de conformação, para, enfim, estar em conformidade. Adotar uma política de compliance, portanto, é adotar regras, posturas e, basicamente, condutas para cumprir toda e qualquer espécie de diretiva. Todavia, no ambiente empresarial, conformar se desdobra em, pelo menos, duas perspectivas, uma primeira funcional e de eficiência e uma segunda de expressão de integridade, transparência, responsabilidade e demonstração de consciência ética e legal. Ambos os desdobramentos sujeitos à construção de um arcabouço de normas que regulem as perspectivas desejadas pela empresa, notadamente em face de suas percepções de sociedade e de mercado.
Adotar políticas de compliance hoje significa não apenas procedimentalizar e seguir práticas, mas também expressar o cumprimento essa procedimentalização em face de observadores internos e externos, agregando, por isso, confiança na regularidade das operações. Logo, há muito que o compliance tem se tornado um fator decisivo para a avaliação e a valoração de empresas em geral.
Pela perspectiva do conteúdo, as políticas de compliance e as medidas adotadas pelas empresas são muito dinâmicas e respondem às preocupações que se fazem relevantes à cada período. Falamos de coisas como transparência em mercado, divulgação de resultados, responsabilidade social, ambiental, consumerista, laboral, digital e um enorme etc. Essa dinâmica responde às preocupações que se fazem relevantes a cada período, hoje consolidadas, por exemplo, sob a ótica estratégica do Environmental, Social and Governance (Ambiental, Social e Governança), que abrange a responsabilidade social, ambiental, consumerista, laboral e digital. A variabilidade de preocupações no contexto da adoção de políticas de compliance é assim uma mola propulsora que vai cada vez mais estimulando que as empresas nesse nosso sistema de mercado migrem do paradigma hobbesiano para uma estrutura civilizacional mais responsável.
O tema da vez: a responsabilidade sobre conteúdos criativos com a participação de menores recentemente alvo de comoção social e de movimentações dos mais amplos grupos.
Não quero me arvorar no tema, mas ele de fato é um tema com o qual tenho trabalhado muito em minha carreira profissional. Não é fácil, seja pela falta de regulamentação que existe, ou ainda pela visão turva e pouco dirigida de diversos setores envolvidos na produção de conteúdos dessa natureza. Considere, de pronto, a ressalva de que um percentual muito pequeno dos produtores de profissionalização intermediária realmente sabe a importância de cuidados como alvarás de filmagem ou preservação de ambientes adequados para crianças e adolescentes. Por outro lado, ainda que boa parte da produção de conteúdo mais profissionalizado (e aí incluímos uma parcela fundamental dos importantes canais e produtoras de conteúdo) reconheça a importância desses cuidados é fato que pouco ou quase nada de outras gamas de profissionais têm clareza sobre o que deve ser feito e os limites do que deve ser feito (e aqui falo de forma ampla de profissionais liberais, pequenas grandes e médias produtoras, influencers em geral ou ainda famílias que produzem conteúdos com seus filhos, sem juízo de valor sobre a natureza da produção).
Claro que empresas em geral sabem o limite extremo do que pode ou não ser produzido e que a experiência riquíssima e premiada do Brasil na produção de conteúdo audiovisual voltado para menores ou com a participação de menores seja um exemplo de que há, sim, quem domine, respeite e promova a produção de conteúdo responsável nessa cena. Não é sobre isso. Sem querer pecar pela ilustração demasiada, seria, dentro de uma lógica singela do absurdo, como afirmar que uma indústria alimentícia não deve adicionar veneno na produção de seus alimentos. Ainda que muita gente possa argumentar que isso acontece em algum nível, também não é disso que estamos falando, não vamos seguir por esse caminho. O debate relevante não é sobre a produção de conteúdo criminoso, mas sobre as nuances do dia a dia: qual o limite de horas de gravação para uma criança de 7 anos? Como a exposição de uma crise de choro familiar afeta o desenvolvimento psicológico do menor, ainda que gere engajamento? A remuneração está sendo gerida de forma a garantir o futuro da criança ou apenas o consumo imediato da família? Quanto tempo antes de uma produção é necessário considerar as questões envolvendo conteúdos com menores de idade? É a ausência de respostas claras para essas perguntas que precisa ser resolvida. A internet está recheada de compromissos contra o uso de conteúdo infantil em todo o grau de repugnância dentro da selvageria que o ambiente da produção de conteúdo (do qual o digital é apenas uma das camadas) pode assumir. O importante é perceber outra coisa.
Ao fazer o encontro entre os dois temas (políticas de compliance e conteúdos com menores de idade), chegamos à conclusão de que não há melhor hora e não há melhor caminho que não o desenvolvimento de políticas adequadas, certeiras e estritas. Políticas que sejam aplicadas desde o mais comezinho conteúdo dentro de redes sociais, que se qualifique materialmente como conteúdo visando a divulgação com finalidade econômica, até à produção de evento mais complexa. Atualmente a crescente responsabilização das plataformas seja talvez a postura mais responsiva e eloquente dos Tribunais. Cito, em primeiro lugar, o julgamento da inconstitucionalidade parcial do artigo 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) promovido pelo STF em torno dos temas 987 e 533, os quais ampliaram de forma nítida a responsabilidade das redes na tomada de posturas ativas perante conteúdos ainda que não sujeitas à uma decisão judicial especifica. Por outro lado, temos a recente determinação da Justiça Laboral na Ação Civil Pública n.º 1001427-41.2025.5.02.0007, ora em trâmite na 7ª Vara do Trabalho de São Paulo, reconhecendo a responsabilidade das empresas do grupo Meta em “fiscalizar” a existência de autorização judicial, o famoso alvará, para hospedagem e publicação de conteúdos produzidos com menores em suas redes sociais. A esse último processo, ainda no ambiente laboral, temos outra Ação Civil Pública n.º 1001154-51.2024.5.02.0022, esta perante a plataforma Twitch, que recentemente teve o reconhecimento da competência trabalhista para julgamento do mérito da ação que trata também da necessidade de alvará.
Todavia, pela própria acepção da proteção integral da criança, do jovem e do adolescente, consagrada pelo art. 227 da Constituição Federal, não faz sentido imaginar a adoção de posturas em uma perspectiva segmentada só voltada ao (sério) problema das redes sociais, sem adentrar em outras cercanias também relevantes, como, por exemplo, artes do espetáculo, artes visuais, mercado da música, audiovisual, eventos públicos e privados em geral e, porque não, os importantes ramos dos esportes, onde muitas práticas que poderiam facilmente ser qualificadas como abusivas estão presentes. Precisamos de um pacto que represente uma verdadeira variável de valor e de corte ético estrito. Um compromisso qualificado, tácito ou explícito, que diferencie os produtores de conteúdo responsáveis, atraindo talentos e construindo uma relação de confiança com o público e, sobretudo, respeitando aquilo que deve ser respeitado. Não acho que a resposta simplista seja a construção de um mecanismo de autorregulação como existe na publicidade em geral.
É fundamental que o setor criativo adote critérios de valor que induzam o respeito a comportamentos responsáveis em face de todo e qualquer conteúdo que envolva menores. A adoção de políticas e práticas a fim de extirpar, por força da abjeção pura, simples e na sua acepção mais formal, práticas repugnadas e repugnantes. Isso passa necessariamente pela união de conhecimentos que permitam compreender e adotar o quanto necessário para construir esses parâmetros. Conhecimentos da área do Direito, Administração, Produção Cultural, Psicologia e Pedagogia são certamente as bases para que possamos pensar em um futuro próximo na elaboração de manuais de procedimentos e na adoção de políticas de compliance que respeitem as crianças e adolescentes, não mutilando o acesso ao conteúdo nem obstruindo a expressão artística e criativa, sem limitações sociais, culturais ou qualquer outra seja.
Assim, é passada a hora de se adotar mecanismos objetivos para garantir a proteção e o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes na produção de conteúdo.
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