Por uma coincidência, este mês revisei muitos contratos de encomenda de trilha sonora para obras audiovisuais aqui no escritório e percebi algumas dúvidas recorrentes das partes envolvidas, tanto das produtoras quanto dos músicos. Este guia traz 9 perguntas e respostas para descomplicar o assunto e esclarecer alguns conceitos que algumas vezes são mal compreendidos.
1. O que é o contrato de encomenda de trilha?
O contrato de encomenda de trilha sonora é um contrato de prestação de serviços, no qual um maestro, um compositor ou um produtor fonográfico se compromete a escrever músicas e entregar as respectivas gravações (fonogramas) para uma produtora audiovisual. Esta produtora irá utilizar estas entregas como parte da trilha sonora de uma obra audiovisual.
Obviamente, esse objeto/escopo dos serviços pode ter diversas variações e detalhamentos dependendo do acordo.
As duas partes podem combinar, por exemplo, que algumas músicas e gravações serão obtidas de licenciamentos de bancos de trilha.
2. Por que os contratos de trilha são tão grandes?
Existem dois motivos principais para o tamanho e complexidade dos contratos de trilha.
Em primeiro lugar, estes contratos envolvem os chamados direitos autorais e direitos conexos (como veremos adiante). Por força da nossa legislação, essas cláusulas devem ser bem detalhadas e prever muito bem os usos e direitos permitidos.
O outro motivo pode decorrer da forma como a produção está organizada. Muitas produções audiovisuais no Brasil são feitas em regime de encomenda, ou seja, a própria produtora também está prestando serviços para um agente financiador (um canal de TV, uma plataforma de streaming, uma distribuidora etc.). Estes financiadores exigem uma série de regras de conduta e cláusulas para todos os envolvidos na produção. É por esse motivo que, durante as negociações, algumas produtoras poderão indicar que não poderão mexer nas minutas de contrato – que foram previamente aprovadas pelo financiador.
3. Por que existem cláusulas de direitos autorais e conexos?
Nos contratos de trilha sonora há 3 direitos que constituem parte central da operação:
a) Direito autoral sobre as composições e arranjos, com titularidade originária (“o primeiro dono”) do compositor/arranjador;
b) Direito conexo sobre as interpretações musicais, com titularidade originária do músico intérprete (o cantor, guitarrista, baterista etc.);
c) Direito conexo sobre os fonogramas, com titularidade originária do produtor fonográfica (aquele que organiza e custeia as gravações, ou seja, normalmente, a própria produtora audiovisual).
A regra geral da nossa Lei de Direitos Autorais (Lei n.º 9.610/98) é que ninguém pode usar obras, arranjos, interpretações ou gravações de outros sem a prévia e expressa autorização. Assim, a produtora precisa regularizar como vai ocorrer a transferência ou autorização desses direitos.
Aliás, é por causa dessa regra que estes contratos costumam ter um anexo, para que o prestador de serviço também consiga as respectivas autorizações com os subcontratados envolvidos nas entregas.
4. Qual a diferença da cessão e licença dos direitos autorais e conexos?
A cessão é uma transferência de direitos. Neste caso, a produtora audiovisual vira a nova titular dos direitos patrimoniais de autor e/ou conexos, que são os direitos de utilizar, explorar e dispor da composição, arranjos, interpretações e gravações. Ou seja, ela poderá explorar livremente as entregas não apenas na obra audiovisual, mas poderá buscar outras formas de rentabilização como a exploração da trilha em plataformas de streaming ou até mesmo com o licenciamento a terceiros.
Muito importante: por lei, a cessão não “transfere a autoria”, em outras palavras, o compositor e os intérpretes deverão ser sempre indicados por sua participação criativa nas composições e fonogramas. A cessão apenas transfere a parcela patrimonial dos direitos, que essa possibilidade de aproveitamento.
O licenciamento, por sua vez, é uma autorização. Logo, não há transferência de direitos. O compositor e os intérpretes licenciam à produtora os direitos de sincronização das músicas e fonogramas, que é essa inserção em uma obra audiovisual, entre outros usos previstos no contrato.
A legislação brasileira dá muita liberdade para as partes negociarem estes direitos. É possível, por exemplo, que os direitos autorais sejam licenciados, mas os direitos conexos sobre as gravações cedidos à produtora encomendante. Ou então, pode ser combinada uma cessão de tudo, mas com algumas reservas de usos para o prestador de serviços.
5. O prestador cede/licencia as obras e fonogramas ou os direitos autorais e conexos?
Tecnicamente, eu entendo que o mais correto é prever em contrato a cessão ou licenciamento dos direitos autorais e conexos sobre as entregas. Essa é a terminologia utilizada no artigo 49 da Lei n.º 9.610/98: “Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito“.
6. Se o prestador de serviços ceder ou licenciar os direitos de forma ampla para a produtora ele perde o direito de receber o pagamento pela execução pública?
De fato, quando ocorre uma execução pública de músicas o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) pode fazer o recolhimento de uma retribuição financeira que será paga aos artistas e demais titulares de direito envolvidos.
O ideal é que essa questão esteja prevista no contrato, seja pela transferência à produtora, seja pela sua manutenção em favor dos compositores e intérpretes.
Há advogados que entendem que o direito de receber a retribuição pela execução pública não podem ser cedidos, de modo que mesmo nos casos de contratos prevendo a cessão de direitos, os autores continuariam tendo direito à receber os pagamentos do ECAD.
7. O prestador tem direito de receber royalties pelo uso das músicas?
Tudo depende de como as partes combinarem. A legislação brasileira dá bastante liberdade de negociação sobre a forma de pagamento. Normalmente, é mais comum que a remuneração seja combinada em um preço fixo, reservando para os autores e intérpretes os direitos de receber os valores pela execução pública feitos pelo ECAD (enquanto a produtora audiovisual fica com a parcela dos direitos conexos sobre o fonograma).
8. Como devem aparecer os créditos do responsável pela trilha?
A legislação brasileira não estabelece especificamente como devem ser atribuídos os créditos. Mais uma vez, as partes irão combinar no contrato a forma de atribuição.
9. Quais os cuidados que devemos ter no contrato?
Além da questão dos direitos autorais e conexos e do pagamento, sugerimos sempre uma atenção especial para dois pontos:
- Escopo: é preciso que exista clareza de quantas músicas/gravações vão ser produzidas, quantas são originais e quantas vêm de bancos de trilhas, qual a forma de entrega, quantas correções estão embutidas no preço, por quanto tempo o prestador deve ficar com o backup das masters e assim por diante;
- Rescisão: o que acontece no caso de um desentendimento, de uma briga ou de uma situação que não estava prevista que leve ao encerramento do contrato? O prestador recebe pelo que fez até o momento? E os direitos ficam com quem?
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