Na área cultural (e especialmente no setor audiovisual), é comum que contratos de prestação de serviços criativos prevejam cláusulas de cessão de direitos patrimoniais de autor bastante minuciosas e extensas.
Isso ocorre porque a Lei de Direitos Autorais (9.620/98) prevê em seu artigo 4º o seguinte: “Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais.” Isso significa que se um determinado uso da obra não foi expressamente previsto em contrato, considera-se que ele não foi autorizado pelo autor. Assim, a Lei adota uma postura mais protetiva dos interesses do autor.
Porém, será que sempre precisamos prever tantos detalhes nas cláusulas de cessão e licenciamento? É claro que a prática mais segura é estabelecer sim os parâmetros de utilização, território, prazo, quantidade, mídias e assim por diante. Mas e se a cláusula de licenciamento ou cessão for genérica ou não for clara sobre determinado assunto. O que fazer?
Nesse caso, devemos sempre recorrer ao Princípio da Boa-Fé nas relações contratuais. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se manifestou recentemente sobre esse tema. Confira a ementa:
“Apelação cível. Ação indenizatória. Direitos autorais. Alegação de veiculação não autorizada de obra dublada sem a devida contraprestação e atribuição de créditos pela dublagem. Os serviços de dublagem foram contratados pelo estúdio, recebendo o autor remuneração relativa ao serviço prestado. Contrato de quitação de serviço eventual, sem qualquer ressalva e o autor não traz aos autos contrato que contenha cláusula limitando a cessão ou garantindo o recebimento de valores outros além do valor já recebido e dado quitação. As relações devem ser pautadas pela boa fé objetiva. Se o autor concordou em realizar o trabalho de dublagem para obra determinada, tendo sido remunerado para tanto, não pode ser aceito o argumento de que não concordou com a reprodução da mesma obra, caracterizando o instituto do ‘venire contra factum proprium’. Multa por litigância de má-fé e justiça gratuita mantidas. Inúmeros julgados envolvendo o autor sobre o mesmo tema deste E. Tribunal e Câmara. Apelos desprovidos.” (TJSP, Apelação Cível n.º 1121921-41.2016.8.26.0100, Relator(a): Silvério da Silva, 8ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 28/08/2019)
Vale refletir que o Princípio da Boa-Fé deve ser aplicado, inclusive, para reforçar os casos de interpretação restritiva do direito autoral. Ou seja, se um escritor licenciou seu livro para a adaptação de um roteiro para longa-metragem de cinema, não nos parece adequado imaginar que essa autorização também compreende a adaptação para uma série de TV, por exemplo. Essa utilização estaria atentando não apenas contra a regra da Lei de Direitos Autorais mas contra o princípio em questão.
Assim, não parece adequado dizer que cláusulas mais enxutas ou objetivas de cessão e licenciamento representam, necessariamente, um encurtamento das possibilidades de uso do contratante ou cessionário/licenciado. Esta deve ser interpretada de acordo com a função do contrato, a intensão das partes e a boa-fé da relação.
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