É verdade que os ativos intangíveis possuem um grande valor na economia do conhecimento. Por outro lado, existem aqueles que não têm interessem na exploração de suas criações ou que não desejam indicar sua autoria. A existência de obras sem um autor claramente identificado não é fenômeno novo, mas ganhou uma outra dimensão com a evolução das tecnologias e o advento da internet, que ampliaram as possibilidades de produção e divulgação de trabalhos literários, artísticos e científicos.
Nesse contexto, vale conversarmos sobre o regime jurídico da obra anônima, ou seja, “quando não se indica o nome do autor, por sua vontade ou por ser desconhecido” (artigo 5º, inciso VIII, alínea “b” da Lei n.º 9.610/98”). Afinal, se uma obra foi publicada como anônima, isso significa que qualquer um poderá utilizá-la?
A Lei de Direitos Autorais (LDA) prevê que “tratando-se de obra anônima ou pseudônima, caberá a quem publicá-la o exercício dos direitos patrimoniais do autor” (artigo 40). Porém, “o autor que se der a conhecer assumirá o exercício dos direitos patrimoniais, ressalvados os direitos adquiridos por terceiros” (parágrafo único do mesmo dispositivo). [1]
Sobre o assunto, João Henrique da Rocha Fragoso leciona que:
“o anonimato do autor verdadeiro em nenhum momento garante a quem publica a obra o exercício dos direitos morais do autor, com se autor fosse, salvo se para defende-los. […] Age, assim, aquele que publica a obra anônima, como representante do autor e gestor de seus negócios, em caráter provisório, não se sub-rogando nos direitos morais ou patrimoniais do autor.” [2]
A obra anônima tem prazo de proteção de 70 anos a contar de 1º de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação (artigo 43, da LDA). Decorrido esse tempo ela cairá em domínio público, podendo ser utilizada livremente por terceiros. Entretanto, sempre que o autor se der a conhecer antes do fim desse prazo, passa a valer a regra geral de proteção de 70 anos, a contar de 1º de janeiro do ano subsequente ao falecimento (parágrafo único do mesmo dispositivo). [3]
Observe-se que a legislação prevê que as obras de “autor desconhecido” estão em domínio público desde o momento de sua publicação. Surge, portanto, uma estranha diferenciação entre obra anônima e obra de autor desconhecido. Ao que parece, a obra anônima possui um responsável por sua publicação, que assume os direitos em nome do autor. Na obra de autor desconhecido realmente não há qualquer identificação de responsável pelo trabalho.
Note-se que o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n.º 1.322.325-DF, julgado em 2014, se manifestou pontualmente sobre o regime jurídico da obra anônima, através de citação de Elisângela Dias Menezes, sem mencionar, porém, a figura do responsável pela publicação:
“A caracterização de uma obra como anônima ou pseudônima leva à grave consequência da impossibilidade de exercício de direito por quem as criou. Se não se conhece o autor ou não se pode precisar quem é ele, impossível que se lhe respeite os direitos de autoria. Significa dizer que as obras anônimas e pseudônimas podem ser livremente representadas, executadas, publicadas ou de qualquer utilizadas, sem o consentimento de seu autor, vez que esse não pode ser identificado. (art. 40, LDA) Trata-se, todavia, de uma utilização de risco. Isso porque, a qualquer momento, dando-se a conhecer, o autor recobra todos os seus direitos sobre a sua obra, obviamente não de forma retroativa, mas daquele momento em diante, em toda a sua plenitude.
[…]
Outrossim, não fará jus o autor aos lucros auferidos por outrem durante o período do anonimato ou do uso sob pseudônimo não identificável. Todavia, uma vez revelada a sua identidade, o autor recobra os seus direitos sobre sua criação e passa a exercê-los não apenas nos aspectos morais, exigindo a atribuição de paternidade, mas também nos aspectos patrimoniais, voltando a ser o único titular dos direitos de exploração econômica da obra.” [4]
Por fim, é bom apontar que “a omissão do nome do autor, ou de co-autor, na divulgação da obra não presume o anonimato ou a cessão de seus direitos” (artigo 52, da LDA). Essa omissão, aliás, pode ser como violação dos direitos de paternidade e crédito da obra, ou seja, de ser identificado como o(a) autor(a) daquela obra (artigo 24, da mesma lei).
Foto por Finan Akbar. In: Unsplash.
[1] Para relembrarmos, os direitos patrimoniais de autor são aqueles que garantem ao titular a exclusividade de usar, fruir e dispor da obra (artigo 28, da LDA).
[2] FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito autoral: da Antiguidade à Internet. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 173.
[3] Curiosamente, a legislação prevê um regime diferente para as chamadas obras de “autor desconhecido” que já se encontram em domínio público (artigo 45, inciso II, da LDA). Ao contrário das obras anônimas, a obra com autor desconhecido não conta com um responsável pela sua publicação, alguém que se sub-roga nos direitos do autor verdadeiro.
[4] MENEZES, Elisângela Dias. Curso de direito autoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2007 Apud Ministro Luis Felipe Salomão. Voto do RECURSO ESPECIAL Nº 1.322.325 – DF. DJe 14/03/2014.