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Cultura e clima – parte I: Como as mudanças climáticas afetam a cultura?

Mudanças climáticas, assim chamadas as alterações globais nos padrões climáticos a longo prazo, têm origens em causas naturais, como incidência solar e acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera, as quais viabilizaram a vida no planeta. No entanto, as ações antrópicas, especialmente no período pós-industrial, como desmatamentos em larga escala e queimas de combustíveis fósseis, aceleraram o processo de concentração desses gases e, consequentemente, intensificaram o aquecimento da temperatura média do planeta. 

 

O aparentemente discreto aumento de 1°C na temperatura global desde os tempos pré-industriais é suficiente para engatilhar eventos não tão discretos, como o derretimento de geleiras, aumento do nível do mar, acidificação dos oceanos, maior frequência de eventos climáticos extremos, períodos mais longos de seca, alteração nos padrões pluviométricos, entre outros efeitos que afetam os sistemas ecológicos, sociais, políticos e econômicos.

 

Considerando o amplo alcance dos efeitos dessas alterações e a interdependência desses sistemas, a cultura, sem dúvida, se torna mais uma dimensão afetada pela crise climática. O meio ambiente que nos cerca modela nosso estilo de vida, fornece nossos meios de subsistência, e integra nossa memória coletiva, o imaginário humano e as artes. Alterações nesse ambiente, consequentemente, modificam o modo como trabalhamos, convivemos e compreendemos o mundo.

 

As interferências dessas alterações causam diversos tipos de perdas para a cultura. O estresse térmico provocado por temperaturas extremas, chuva ácida, eventos climáticos violentos e outros efeitos da crise climática podem danificar ou diminuir a longevidade de patrimônios culturais materiais, como edificações, sítios arqueológicos, ruínas e estátuas. Segundo a UNESCO, a cidade de Lamu, no Quênia, é o assentamento suaíli mais antigo e preservado da África Oriental, mas a perda da areia e da vegetação que protegiam a costa, assim como o aumento do nível dos oceanos, coloca em risco o patrimônio cultural no litoral da cidade (Fonte: BBC Brasil).

 

Outras alterações nos padrões climáticos de uma região, como na frequência de precipitação e nos níveis de umidade, afetam a agricultura, bem como a biodiversidade, acarretando não apenas em prejuízo para a economia, mas também perda de hábitos gastronômicos, costumes, identidade e outros elementos culturais. Estima-se que a produção de café poderia se tornar inviável no sudeste, devido às altas temperaturas, e tenderia a migrar para o sul, que, no entanto, teria sua produção afetada pelo aumento de chuvas (Fonte: Paineira USP). Na região do Mar do Japão, um país em cuja dieta predomina o consumo de peixes, o aquecimento dos oceanos, associado à pesca predatória, reduziu o número de peixes em 35% (Fonte: National Geographic), o que pode afetar os hábitos e segurança alimentar dos japoneses.

 

O aumento do nível do mar, a maior frequência de eventos climáticos extremos, entre outros efeitos das mudanças climáticas podem acarretar ainda em perda de acesso a algumas regiões. Desde 1989, a ONU advertia que Kiribati, um país formado por 33 ilhas no Pacífico, seria o primeiro país a desaparecer em decorrência do aumento do nível do mar (Fonte: El País) e, de fato, tornou-se um dos exemplos mais críticos de migração climática. Um dos grandes desafios de migrações como essas é transferir a comunidade afetada para outra região de modo que a soberania e identidade cultural das pessoas deslocadas sejam transportadas o quanto possível. Contudo, grande parte da identidade cultural de uma nação está ligada à região em que ela se originou e se desenvolveu. No caso de Kiribati, uma das questões delicadas dessa migração foi o deslocamento das pessoas para habitações bastante diversas da arquitetura tradicional utilizada por elas.

 

A migração tem se tornado uma medida necessária em casos extremos, mas mesmo alterações e descaracterizações “menores” do cenário e da paisagem local podem prejudicar a relação das pessoas com o meio ambiente e, portanto, com a cultura, podendo diminuir a auto estima e senso de pertencimento da população local, além de prejudicar as atividades de recreação, turismo e lazer, bem como a economia local. Mudanças climáticas são grandes responsáveis pela perda das coberturas de gelo em regiões da Europa e América do Norte, por exemplo, o que tende a afetar as práticas esportivas, as atividades recreativas e o turismo de inverno (fonte: Climate Central).

 

Distúrbios climáticos, atividades danosas ao ambiente ou má gestão ambiental afetam profundamente os serviços ecológicos e o equilíbrio dos ecossistemas, provocando a perda de espécies animais e vegetais que, por sua vez, são componentes que integram práticas regionais, atividades econômicas e expressões culturais. A cultura brasileira é uma cultura amplamente construída em torno da sua biodiversidade, o que pode ser observado por exemplo no imaginário popular, na literatura e na pintura. A diversidade e grandiosidade da natureza foram elementos frequentemente explorados em diversos momentos da história brasileira, fundamentais na construção de uma identidade nacional, não só no campo das artes, mas também da política.

 

Mudanças climáticas também são responsáveis diretos pela perda de patrimônio imaterial em sociedades tradicionais, as quais frequentemente possuem uma tradição cultural predominantemente oral. A UNESCO disponibiliza um atlas de idiomas mundiais em risco de desaparecimento (UNESCO Atlas of the World Languages in Danger) e, dentre as potenciais condições que aumentam a vulnerabilidade desses idiomas, estão as mudanças dramáticas no ambiente físico. Os povos Bayso e Harro no Lago Abaya da Etiópia, por exemplo, deixaram suas ilhas, quando a pesca não mais provia condições de subsistência, mas, nos novos ambientes, as crianças cresceram em vizinhanças dominantes, de modo que a transmissão do idioma original desses povos se tornou um enorme desafio (Fonte: UNESCO).

 

Assim, mudanças climáticas afetam, direta ou indiretamente, a memória e a identidade das culturas, o que interfere não apenas nas culturas individualmente, mas na cultura global como um todo, à medida que se perde parte da diversidade cultural a que temos acesso. Além disso, embora os efeitos sejam sentidos por todo o mundo, diferentes países possuem diferentes capacidades e recursos para lidar com a crise climática, de modo que algumas comunidades e culturas estão mais vulneráveis do que outras.

 

A importância da cultura vai além do entretenimento, sendo um elemento essencial para o desenvolvimento social e pessoal, bem como para a dignidade humana, trazendo significação para o mundo, fortalecendo a democracia, a cidadania e a educação, e contribuindo para a geração de riquezas materiais e imateriais. Uma vez que a cultura trafega em diversos setores da administração pública, não pode ser desprezada ou subestimada pela agenda pública, especialmente num momento tão crítico. Na segunda parte deste artigo, serão apresentadas algumas das potencialidades da cultura, inclusive como mecanismo a ser agregado à lista de ações contra a crise climática.

 

Photo by Toomas Tartes on Unsplash

 

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