A máxima de que “a vida imita a arte” às vezes chega às beiras do aterrorizante. Quando paramos para ver alguns trabalhos artísticos criados a centenas de anos atrás e a relação que se pode estabelecer entre eles e a realidade contemporânea, o resultado pode deixar qualquer um muito surpreso.
Há alguns dias ao ver a peça O Mercador de Veneza de William Shakespeare, escrita entre os anos de 1596 e 1598, deparei com o empréstimo entre Shylock (um rico financista), Bassânio (a pessoa que precisava de dinheiro) e Antônio (o fiador do empréstimo). Na peça, Shylock, ao disponibilizar alguns milhares de ducados a Bassânio, exige que Antônio, como fiador, coloque em garantia, no caso de não pagamento, uma libra de carne de seu próprio corpo. Isso, porque, na oportunidade, Antônio não possuía a disponibilidade de seus bens como garantia e Shylock pretendia, com a estranha exigência, aplicar uma punição em Antônio.
Indico a leitura da peça para ver o fim que o bardo Inglês deu à questão…
Inspirado pela peça, ficou muito claro que o desenvolvimento de novos formatos de relações econômicas tem atingido uma das bases da estrutura jurídica histórica, no caso, o patrimônio. Hoje, ao contrário dos últimos dois mil anos de história da humanidade, a necessidade de que Antônio tenha patrimônio para a garantia das relações econômicas tem sido abandonada pela possibilidade de manutenção da estrutura de subsistência sem que ele, necessariamente, seja um proprietário ou esteja com a plena disponibilidade de seus bens.
Ao pensarmos, por exemplo, em modelos colaborativos e de compartilhamento tão comuns hoje em dia podemos identificar que Antônio não precisa ter patrimônio para viver em sociedade ou estar inserido dentro do mercado econômico. Falamos aqui de inúmeros serviços que permitem a Antônio usufruir de bens sem ter esses bens. Estão nessa cesta o UBER, o Zazcar, o AirBnb, os Contratos de leasing dentre diversos outros não patrimoniais, colaborativos etc. Todas situações em que, no extremo, estamos pagando ou trocando para utilizar um bem que não nos pertence.
Não que Antônios sem patrimônio sejam uma figura nova na sociedade, mas o fato é que ter patrimônio é algo cada vez menos buscado como resultado de êxito na vida profissional e financeira e menos necessário ainda para se viver, e viver bem, na atualidade.
Patrimônio, um problema jurídico
Se, de um primeiro ponto de vista, isso pode parecer bom, pois revela uma perda de valor dos bens materiais, um olhar mais atento, pode demonstrar dois problemas bem sérios do ponto de vista juridico.
O primeiro é a possibilidade de garantia de obrigações assumidas e juridicamente vinculantes. Falamos dos contratos, aquele instrumento juridico que serve para vincular pessoas através de obrigações de dar (e pagar), fazer ou não fazer coisas. Você pode não acreditar, mas uma olhada histórica mais atenta vai revelar que toda a sistemática de garantias dos contratos está baseada na capacidade patrimonial que pessoas como Antônio têm. Ou seja, o sistema histórico do direito vem se pautando, ao longo de muito tempo, na existência de patrimônio como um mecanismo razoável para dizer se o Antônio pode pagar ou não.
O segundo ponto, que parece mais complicado, é uma progressiva abstração das formas de afirmação de capacidade de pagar. Traduzindo: é, por um lado, a inscrição do nome do Antônio no SERASA, no SCPC e nos demais órgãos de proteção ao crédito; por outro lado, é a crescente demanda por algoritmos que, através das fórmulas mais diversas, “provem” para as instituições financeiras que Antônio é capaz de pagar aquele empréstimo ou de quitar em dia a parcela daquela compra.
Esses pontos, em conjunto, desaguam em uma situação ainda mais séria para o Direito e que revela o atual gargalo na atividade da Justiça: a executoriedade de obrigações judiciais.
Para pensar nisso, basta considerar as formas com que um Juiz tradicionalmente obrigaria Antônio a pagar uma quantia que deve a Shylock ou fazer alguma coisa. Essas formas se dividem em, basicamente, duas espécies a sub-rogação e a coerção…
Explico…
Podemos entender por sub-rogação todas as medidas que um Juiz pode tomar, substituindo a vontade de Antônio, para que seja cumprida uma decisão judicial que o obrigou a pagar o valor tomado em empréstimo de Shylock. O exemplo mais claro disso seria a tomada a força de um imóvel ou a busca e apreensão de um bem, por exemplo, como um carro ou um navio para ficar no exemplo da peça. Se insere nesse caso, também, a penhora de valores em contas e aplicações financeiras, que hoje é um meio muito ágil que o Juiz pode conduzir pelo computador de seu gabinete.
Por coerção entendemos, simplificando muito, as medidas que “estimulem” Antônio a fazer o que o Juiz mandou. Isso, em um processo pode ser feito em regra com a imposição de multas, ou seja, com um impacto financeiro na vida de Antônio para que ele tome a iniciativa de pagar Shylock.
Como a Justiça lida com isso?
Agora pensem como a justiça pode lidar com o cenário de progressiva perda de patrimônio e as formas que ela usualmente utiliza para fazer valer a sua autoridade…
Pois é… difícil né!?
Como penhorar um patrimônio que não é de Antônio, mas sim um carro adquirido em contrato de leasing, ou aplicar uma multa que obriga Antônio a pagar uma grana que ele não tem?
Para conseguir isso a justiça tem tomado alguns caminhos “diferentes” para não dizer extremamente criticáveis. Falamos aqui das medidas coercitivas relativas à limitação de direitos. Se você está pensando em cassação de passaporte, de carteira de habilitação de cartão de crédito, é exatamente disso que estamos falando.
E, sim, a justiça tem feito isso cada vez mais e com cada vez mais recorrência e interferência nos direitos das pessoas e de terceiros, direitos como o de usufruir e conceder crédito (cartão), de ir e vir (carteira de motorista) dentre outros. Claro que essa mão pesada, e talvez no lugar errado, não está imune a críticas, as quais vêm de todos os lados.
Mas o fato é que isso que estamos falando aqui é um segredo já sabido por todos e as leis tentam, já há muito tempo, criar formas para driblar a impossibilidade de executar uma ordem judicial. Apenas para se ter uma ideia, o relatório Justiça em Números 2017 aponta que hoje 51% das 79 milhões de ações em acervo são ações em fase de execução. Ou seja, o Brasil tem hoje 40,6 milhões de execuções pendentes de “baixa” nas quais não se consegue satisfazer o que o juiz determinou. Esses percentuais contribuem diretamente com o congestionamento da justiça.
Não é por outra razão que as Leis, em especial o Código de Processo Civil, têm aberto, de algum modo, as portas para medidas como as que listamos acima, isso sem falar em diversas outras leis que, ao menos desde o ano de 2006, têm sido elaboradas para agilizar e facilitar a execução. Se a eficiência desses meios vai piorar ou melhorar com o efeito dessa perda do valor do patrimônio, só o tempo pode nos dizer.
O que temos para o momento é que o judiciário está atravessando algumas linhas de garantia mínima do Antônio e dos demais cidadãos, pois não podemos considerar como problema deles a incapacidade de um credor verificar a sua disponibilidade financeira para pagar. Seria demais, também, dizer que é do Antônio ou de qualquer cidadão a culpa pelo descompasso entre evolução das trocas econômicas e Direito.
Enfim, do mesmo modo que é dever do Judiciário proteger o credor ele tem responsabilidade em garantir uma série de direitos ao devedor, não impedindo que ele usufrua de suas liberdades civis mínimas ou atacando a liberdade de outros em concederem crédito ou explorarem novos ramos da economia, uma atuação evidente dessa função tão importante do Estado.
Seguimos, assim, em um palco onde Antônio está sujeito a perder uma libra de carne e o Judiciário tem se esforçado muito para que, ao pagar essa libra, ele não perca uma gota de sangue. Será que isso é possível?