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A proteção judicial do patrimônio cultural pela Ação Popular

Esta semana, o Exmo. Juízo da 12ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo concedeu liminar impedindo que a Prefeitura apague grafites e murais sem antes realizar consulta ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP). [1]

 

A decisão foi proferida em Ação Popular, um instrumento processual criado para que a população possa defender seus interesses coletivos. Neste artigo, trataremos do cabimento dessa medida na proteção do patrimônio cultural. Ao contrário dos nossos textos tradicionais para o site, tomamos a liberdade de trazer uma abordagem “mais técnica e jurídica” do assunto.

 

Do Dever do Estado de Proteção ao Patrimônio Cultural

A Constituição Federal impôs ao Estado, em todas as esferas da federação, o dever de guarida e promoção do patrimônio cultural brasileiro:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

V –  proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;

IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

Art. 30. Compete aos Municípios:

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

IV democratização do acesso aos bens de cultura; [2]

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

 

Por seu turno, a Constituição do Estado de São Paulo, prevê:

Artigo 237 – A educação, ministrada com base nos princípios estabelecidos no artigo 205 e seguintes da Constituição Federal e inspirada nos princípios de liberdade e solidariedade humana, tem por fim:

VI – a preservação, difusão e expansão do patrimônio cultural;

Artigo 260 – Constituem patrimônio cultural estadual os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

III – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

IV – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Artigo 261 – O Poder Público pesquisará, identificará, protegerá e valorizará o patrimônio cultural paulista, através do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, CONDEPHAAT, na forma que a lei estabelecer.

 

O ordenamento brasileiro tratou de garantir a mais ampla e plena proteção ao patrimônio cultural, elevando o direito de acesso a essa riqueza e legado à condição de direito fundamental positivado na Constituição Federal. [3]

 

A mesma tutela pode ser encontrada em todas as normas internacionais de proteção ao patrimônio. Cite-se, como exemplo, a Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, ratificada pelo Decreto n.º 80.978/1977, que assim dispõe:

Artigo 4º. Cada um dos Estados parte na presente Convenção deverá reconhecer que a obrigação   de   assegurar   a   identificação, protecção, conservação, valorização   e   transmissão às gerações futuras do património cultural e natural referido nos artigos 1.º e 2.º e situado no seu território constitui obrigação primordial.  Para tal, deverá esforçar-se, quer por esforço próprio, utilizando no máximo os seus recursos disponíveis, quer, se necessário, mediante a    assistência e a cooperação internacionais de que possa beneficiar, nomeadamente no plano financeiro, artístico, científico e técnico.

Artigo 5º. Com o fim de assegurar uma protecção e conservação tão eficazes e uma valorização tão activa quanto possível do património cultural e natural situado no seu território e nas condições apropriadas a cada país, os Estados parte na presente Convenção esforçar-se-ão na medida do possível por:

d) Tomar as medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e financeiras adequadas para a identificação, protecção, conservação, valorização e restauro do referido património; e

 

José Afonso da Silva bem aponta que não existe concretização ou pleno exercício dos direitos culturais sem a atuação positiva do Estado por meio de políticas públicas. O direito ao patrimônio cultural, particularmente, é tão importante que cada país tratou de estabelecer uma diversidade de normas e instrumentos próprios de proteção. Eis que a mera proteção formal e reconhecimento de seu valor nunca será suficiente. Em suas palavras:

É necessário dar-lhe proteção vital, por meio de atos e procedimentos destinados a preservá-lo, valorizá-lo e revitalizá-lo. Por ‘preservar’ entende-se impedir a indiscriminada destruição de elementos componentes do patrimônio cultural e especialmente o patrimônio ambiental urbano, onde a ação destruidora é mais intensa, e nos casos em que a mesma não seja imprescindível para o desenvolvimento urbano, em função da existência de soluções alternativas. [4]

 

O conhecido processo de tombamento é apenas um dos possíveis instrumentos de tutela à disposição do Estado. Nesse sentido, é desejável que políticas públicas possam implementar outras ações como editais de fomento, incentivos fiscais para a preservação, desapropriação, livros de registro, entre outras.

 

Nos doutos ensinamentos de Sônia Rabello de Castro, preservação e tombamento não são sinônimos, ainda que, por vezes, sejam erroneamente tratados como tal:

Preservação é o conceito genérico. Nele podemos compreender toda e qualquer ação do Estado que vise conservar a memória de fatos ou valores culturais de uma Nação. É importante acentuar este aspecto já que, do ponto de vista normativo, existem várias possibilidades de formas legais de preservação. A par da legislação, há também as atividades administrativas do Estado que, sem restringir ou conformar direitos, caracterizam-se como ações de fomento que têm como consequência a preservação da memória. Portanto, o conceito de preservação é genérico, não se restringindo a uma única lei, ou forma de preservação específica. [5]

 

Aliás, a análise administrativa do Poder Público nos processos de tombamento costuma levar meses e até anos, o que pode levar à completa deteriorização e destruição do bem. Vale lembrar os casos da “Mansão Matarazzo” ou do casarão de Josephina Lotaif, na Avenida Paulista, que acabaram sendo derrubados enquanto as medidas burocráticas de proteção ainda estavam em curso. Nesse último, a família se recusou a receber a notificação da Secretaria de Cultura.

 

Com efeito, dada a fragilidade dos bens culturais, a atuação do Poder Judiciário – sobretudo na prevenção de atos lesivos e de danos à coletividade – mostra-se mais que necessária.

 

Em muitos casos, a (útil e efetiva) preservação e proteção ao patrimônio só se dá com a tutela e provimento jurisdicional. Conforme bem pondera Édis Milaré:

… o reconhecimento de que determinado bem tem valor cultural não é privativo do Poder Legislativo ou do Executivo, podendo também ser emanado do Poder Judiciário.

Essa a linha preconizada pela Lei nº 7.347/85, que tornou possível a inclusão de bens no patrimônio cultural brasileiro por meio de decisão judicial, independentemente do critério administrativo. Aliás, ‘pode ocorrer que a falta de proteção de tais bens decorra extremamente da omissão do Poder Público, ou seja, do ato de tombamento, de forma que, se esse fato ocorre, é através da ação civil pública que os legitimados buscarão a necessária tutela jurisdicional’. A propósito, não custa lembrar que ‘o tombamento não constitui, mas apenas declara a importância cultural de determinado bem, motivo pelo qual mesmo coisas não tombadas podem ser tuteladas em ação civil pública’. Realmente o valor cultural de um bem não emerge de mera criação da autoridade, posto que ele já tinha a existência histórica no quadro da sociedade. O fato de um bem determinado pertencer ao patrimônio cultural, ou, como diz a lei, ser bem ou direito ‘de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico’, pode ser provado no curso de ação civil pública e referendado por provimento jurisdicional. [6]

 

Em outras palavras, muitas vezes o Judiciário será o último bastião de defesa de nossa história e de nosso patrimônio. Vale reforçar: a proteção do patrimônio cultural não é apenas um programa constitucional abstrato; é direito da população brasileira constitucionalmente garantido! Sua concretização se dá, sim, nas políticas, na atividade legislativa e administrativa, mas também no provimento da Justiça!

 

Do Cabimento da Ação Popular: das partes e do interesse de agir

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXIII, previu a ação popular como instrumento hábil de defesa e proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural:

Art. 5º. LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

 

O artigo 216, parágrafo primeiro, por sua vez, dispõe que o dever de proteção do patrimônio cultural brasileiro deverá ser exercido com a colaboração de toda a comunidade:

Artigo 216. § 1º. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

 

Como bem pondera José Rubens Morato Leite, ao tratar da proteção do meio ambiente, a ação popular é o meio legítimo para que o cidadão se torne um defensor do interesse da coletividade:

Atribuindo ao cidadão a legitimidade na defesa jurisdicional do ambiente, via ação popular, aperfeiçoa-se o exercício da tarefa solidária e compartilhada do Estado e da coletividade, consecução do poder-dever da proteção ambiental. (…) Acrescente-se, conforme já referido, que esse meio de defesa da cidadania ambiental abre espaço para a intervenção direta do indivíduo, em verdadeira possibilidade do exercício da cidadania participativa nas correções das disfunções existentes nas tarefas da proteção ambiental como bem pertencente à coletividade. (…) Torna-se o cidadão, com essa legitimidade, um verdadeiro defensor do interesse da legalidade e da coletividade, sem ter que invocar interesse pessoal no ato lesivo. (…) A proteção jurídica subjetiva do ambiente fica clara a partir do momento em que a Constituição da República Federativa do Brasil reconhece o direito fundamental ao meio ambiente a todos. Nesse perfil entende-se que a tutela, via ação popular ambiental, é um direito subjetivo fundamental de caráter difuso da coletividade e acionável individualmente pelos cidadãos e, por isso, foi por nós inserido dentro da categoria de dano ambiental individual. [7]

 

Eis que o artigo 1º, da Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965, que regula o tema, dispõem que:

Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

 

O autor da ação popular é, portanto, o cidadão no pleno exercício de seus direitos políticos que ingressa com a medida em busca do acautelamento dos interesses da coletividade, no caso, a defesa do patrimônio cultural.

 

O interesse de agir se consubstancia justamente da (ameaça de) lesão ao bem coletivo impugnada na ação popular, segundo o esclarecimento de José Afonso da Silva:

O que, em verdade, move o autor popular é o interesse da sociedade de ter uma administração honesta, no tocante ao patrimônio público. Toda vez que este, em tese, é tido como lesado, nasce o interesse de agir para o cidadão. Quanto a saber se efetivamente houve a lesão, é questão de mérito, dependente de provas a serem produzidas no desenvolvimento da relação jurídica processual. Basta que o autor popular afirme a lesão, para que o interesse, abstrato, de demandar em ação popular, se verifique, postulando a atividade jurisdicional para apreciar a afirmativa e sobre ela ditar a sentença favorável ou desfavorável. A existência, ou não de vício de lesividade do ato não interfere com o interesse de agir, no caso; trata-se de requisito específico da demanda, e não de qualquer de suas condições abstratas. [8]

 

O artigo 6º do mesmo diploma, por sua vez, dispõe que: “A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.”

 

Desse modo, conforme aponta Rodolfo de Camargo Mancuso, “a mens legislatoris é a de estabelecer um espectro o mais abrangente possível, de modo a empolgar no polo passivo não só o causador ou produtor direto do ato ou conduta sindicados, mas também todos aqueles que, de algum modo, para eles contribuíram por ação ou omissão, e bem assim os que deles se tenham beneficiado diretamente.” [9]

 

Logo, o polo passivo da Ação Popular poderá englobar tanto a Administração Pública como terceiros envolvidos na deteriorização do patrimônio.

 

Da causa de pedir

Via de regra, a causa de pedir da presente ação popular está fundamentada, remotamente, no direito subjetivo público de cada cidadão à preservação e integridade do patrimônio cultural, e, como causa próxima, no dano iminente e irreversível ao bem cultural.

 

Sobre a lesão ao patrimônio cultural, vale transcrever a seguinte passagem de Fernanda Passanha do Amaral Gurgel:

No caso do patrimônio cultural em sentido amplo, incluindo todos os bens e direitos de valor artístico, histórico ou turístico, a lesão resta configurada com a destruição, a deterioração ou a falta de um comportamento efetivo destinado à preservação dos bens, independentemente do prejuízo econômico real.

Nessa ordem de ideias, ainda que um objeto de valor histórico não tenha conteúdo patrimonial imediato, como, por exemplo, um documento antigo ou pedras sem valor de mercado, haverá a lesão a ensejar a anulação do ato positivo ou negativo causador. Aqui nos parece que a lesão está relacionada ao prejuízo causado a valores constitucionalmente protegidos, ainda que inexistente uma repercussão patrimonial certa e determinada. [10]

 

Ainda nesse ponto, devemos esclarecer que a legislação que disciplinou a ação popular não prevê que o patrimônio objeto da lide deva ser previamente reconhecido como “de valor cultural” pelo tombamento. Esse é justamente o apontamento realizado por Hugo Nigro Mazzili ao tratar da ação civil pública, cujo raciocínio também parece se aplicar ao caso:

Fica claro, no exame da legislação, que tanto se protege o patrimônio público tombado como o não tombado. Em caso de tombamento, temos proteção administrativa especial.  Sempre que o legislador, por qualquer razão, quis exigir tombamento, ele o explicitou  claramente. Na Lei 7.347/85, entretanto, o legislador não limitou a proteção jurisdicional de valores culturais apenas aos bens tombados — e seria rematado absurdo se o fizesse.

Afinal, nada impede que um bem tenha acentuado valor cultural, mesmo que ainda não reconhecido ou até mesmo se negado pelo administrador; quantas vezes não é o próprio administrador que agride um bem de valor cultural ?!

O tombamento, na verdade, é um ato administrativo complexo: de um lado, declara ou reconhece a preexistência do valor cultural do bem; de outro, constitui limitações especiais ao uso e à propriedade do bem. Quanto ao reconhecimento em si do valor cultural do bem, o tombamento é ato meramente declaratório e não constitutivo desse valor;  pressupõe este último e não o contrário, ou seja, não é o valor cultural que decorre do tombamento.

[…]

Admitir que necessário fosse o prévio tombamento para posterior defesa em juízo, seria, na verdade, tornar inócua na maioria das vezes a proteção jurisdicional. Se só bens tombados (definitiva ou provisoriamente)  pudessem ser protegidos pela ação civil  pública, por absurdo nem mesmo uma cautelar, dita satisfativa, destinada a impedir um dano  iminente,  poderia  ser  proposta,  se  o  bem  de  valor  cultural  não  estivesse  tombado … Frustrar-se-ia o escopo das leis, seja o da Lei n. 7.347/85 (que cuida não só da  reparação   do  dano,  como  de  sua  prevenção),  seja  até  mesmo  o  escopo  da  Constituição da República (cujo art. 216, § 4º, prevê  punição não só pelos danos, como pelas próprias situações de risco causadas ao patrimônio cultural).

Além do mais, partindo do raciocínio de que o bem tenha valor cultural para a comunidade, titulares deste interesse são os indivíduos que compõem a coletividade (por isso que o interesse é difuso).  Ora, seria inadmissível impedir, por falta de tombamento, o acesso ao Judiciário para proteção a valores culturais fundamentais da coletividade. Não há nenhuma exigência da lei condicionando a defesa do patrimônio cultural ao prévio tombamento administrativo do bem, que, como se viu, é apenas uma forma administrativa, mas não sequer a única forma de regime especial de proteção que um bem de valor cultural pode ensejar. [11]

 

Afinal, como falamos antes, o tombamento não é a única forma de proteção ao patrimônio cultural, sendo a ação popular instrumento (constitucionalmente garantido) de acautelamento, inclusive para casos de ameaça e dano não consumado. Ainda nas lições de Hugo Nigro Mazzilli: a “Constituição de 1988, nos seus artigos 215-6, alargou bastante a abrangência dos interesses culturais, que evidentemente passam a merecer proteção também por via judicial.” [12]

 

Como bem assinala Maria Sylvia Zanella di Pietro, os bens ainda não tombados são os que mais necessitam de proteção, motivo pelo qual não seria exigível o prévio tombamento como condição da ação. Eis que “se em juízo ficar reconhecido o valor patrimonial do bem, para fins de proteção, ter-se-á um caso típico de tombamento resultante de decisão judicial.” [13]

 

A questão do “valor cultural” pode, então, ser atestada por outros meios como perícias técnicas de arquitetos, historiadores e urbanistas.

 

Logo, a ação popular tornou-se medida adequada para prevenir e/ou impedir qualquer tipo de lesão ao patrimônio cultural, conforme já atestado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo:

APELAÇÃO –  AÇÃO POPULAR – Demanda visando obstar que obras da Prefeitura   Municipal acabem por demolir patrimônio cultural e histórico da cidade – Procedência pronunciada em Primeiro Grau – Decisório que merece subsistir – Conselho de   defesa   do   patrimônio histórico   e   arquitetônico do Município  de  Limeira  que atestou a importância da obra erigida em 1937, que abrigava importante complexo fabril da Cidade – Muros que cercam a indústria e complexo    educacional  que estão    sendo demolidos para a expansão de avenida – Inadmissibilidade – Importância   incontestável   dos   monumentos   que, pela história e arquitetura, ganharam proteção legal do Município – Evidências  de que  as  obras  da  Administração – Pública descaracterizariam   a   construção – Reexame   necessário desacolhido. – Negado provimento ao recurso. (TJSP, Apelação / Reexame Necessário nº 0020492-09.2012.8.26.03, 8ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Rubens Rihl, Julgado em 22 de julho de 2015)

APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO POPULAR – Agravo retido – Falta  de  reiteração  em   sede  de  apelação – Não conhecimento – Inteligência do artigo 523, § 1º, do Código   de  Processo  Civil  – Obras  realizadas  no  entorno de bem tombado – Legislação que determina a aprovação feita   pelos   conselhos   responsáveis   pela   proteção   do patrimônio histórico, artístico e cultural de obras no raio de  300  metros  do  bem –   Ausência  de  aprovação  prévia do  CONDEPHAAT  e  do  CONDEPACC-   Lesividade configurada  pela  prática  do  ato  ilegal  – Manutenção  da sentença  – Agravo  retido  não  conhecido  e  recursos  não providos. (TJSP, Apelação n.º  0066393-80.2005.8.26.0114, 12ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Osvaldo de Oliveira, Julgado em 19 de setembro de 2012)

 

Tecidas essas considerações, passemos a tratar do pedido.

 

Do pedido

Nos termos do artigo 11, da Lei n.º 4.717/1965, o objeto da ação será sempre a desconstituição do ato lesivo e a condenação dos responsáveis, de maneira que a “sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele, ressalvada a ação regressiva contra os funcionários causadores de dano, quando incorrerem em culpa.”

 

Dessa forma, o pedido pode se concretizar, por exemplo, no pedido de anulação de um alvará de destruição de um imóvel, na suspensão de ações de pintura sobre grafites etc.

 

Conforme reflete Fernando Dias Menezes de Almeida: “a anulação de ato jurídico, seguida de condenação de indenizar em dinheiro, não é o modo mais eficaz de se combater ou prevenir a lesão ao patrimônio cultural, dada a infungibilidade dos objetos que o constituem.” [14]

 

Por esse motivo, a ação popular poderá ser utilizada tanto de forma preventiva (antes da consumação dos efeitos lesivos) ou repressiva (quando o ajuizamento busca o ressarcimento do dano já causado). Nesse exato sentido, vale transcrever os bons ensinamentos de Inês Virgínia Prado Soares:

A ação popular pode também ter por objeto a correção de atos do Poder Público relativos à gestão dos bens culturais ou mesmo ao manejo inadequado dos instrumentos protetivos administrativos, como o tombamento. A ação popular pode ter como finalidade: a) a prevenção a lesões e danos aos bens culturais; b) a repressão; c) a correção da atividade administrativa lesiva ao patrimônio cultural. A finalidade preventiva é extremamente importante em razão das características dos bens culturais, muitas vezes únicos, singulares, frágeis ou de valor excepcional. A repressão, além de atender à sua função precípua, deve dar visibilidade aos bens culturais atingidos e à relevância de sua proteção. Por fim, a atividade estatal a ser corrigida pode ser comissiva ou omissiva. Por isso a ação popular pode ter finalidade de suprir a inatividade do Poder Público. [15]

 

Assim, dado o risco de dano irreversível que muitas vezes assola o patrimônio cultural, é possível obter provimento jurisdicional preventivo e imediato, com base no artigo 5º, parágrafo 4º, da Lei n.º 4.717/1965, que prevê: “Na defesa do patrimônio público caberá a suspensão liminar do ato lesivo impugnado.”

 

Retomando os precisos ensinamentos de Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel:

Com a finalidade de evitar a consumação do dano, o qual, inclusive, pode vir a ser irreversível, acertadas posições jurisprudenciais e doutrinárias, passaram também a admitir a ação popular em caráter preventivo, com a possibilidade de suspensão liminar do ato lesivo impugnado, conforme a previsão contida no art. 5º, § 4º, da Lei n.º 4.717/65.

Desse modo, todo e qualquer ato que produza efeitos lesivos ou que possam vir a ser lesivos, nos termos da lei, merecem a tutela via ação popular. A lesão final concreta não precisa ocorrer, bastando a potencialidade lesiva do ato impugnado.

Por essa razão, sendo iminente a prática do ato lesivo, ou mesmo a sua conclusão, é cabível a ação popular como mecanismo de prevenção. Vê-se que admitir a necessidade do resultado final da lesão como pressuposto para o ajuizamento da ação popular seria contrariar a própria Constituição Federal, que teve por objetivo preservar, de maneira mais efetiva possível, os valores culturais, históricos e artísticos.

[…] verifica-se a admissibilidade em se de ação popular da aplicação de uma tutela jurisdicional que impeça a realização de conduta comissiva ou omissiva ilícita e danosa ao patrimônio cultural. Sob a perspectiva da eficiência, poderá o juiz, ainda no exercício de cognição não exauriente, conceder tutela específica da obrigação de fazer ou não fazer, determinando providências no sentido da restauração in natura da situação anterior ou medidas que assegurem o resultado prático equivalente. [16]

 

Como não poderia deixar de ser, a liminar em ação popular de proteção ao patrimônio cultural também deverá demonstrar os requisitos do periculum in mora e fumus boni iuris:

Ação   Popular – Liminar – Interdição férrea – Ocorrência de desastre – Presença dos       requisitos essenciais do “periculun in mora” e “fumus boni jurís” – Hipótese em que   a   necessidade de defesa do patrimônio histórico e cultural do local demonstra a     viabilidade da concessão da medida. Recurso improvicío. (TJSP, AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 525.975-5/5-00, 1ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Franklin Nogueira, Julgado em 6 de junho de 2006)

 

Destarte, não há dúvidas de que a Ação Popular é meio idôneo para a tutela do patrimônio cultural local, regional ou nacional – esteja ele reconhecido ou não formalmente pelas instâncias da Administração.

 

Breves considerações sobre a função social da propriedade

Não é incomum que o tema de preservação seja confrontado com o do desenvolvimento urbano. Afinal, a manutenção da integralidade e características originais de um bem cultural pode passar a falsa ideia de estagnação, ou mesmo, de não aproveitamento econômico. Isso é especialmente verdade se considerarmos que instrumentos como a desapropriação e o tombamento são limitadores do direito de propriedade.

 

Devemos lembrar que a Constituição também impõe que a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, XXIII), devendo, portanto, ser conciliada com as finalidades sociais, econômicas e sociais pactuadas na República.

 

No caso da propriedade urbana, essa função social se dá ainda apenas “quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (artigo 182, parágrafo segundo, CF). Em São Paulo, a Lei Municipal n.º 16.050, de 31 de julho de 2014, que aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico assim dispõe:

Art.   7º. A Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico se orientam pelos seguintes objetivos estratégicos:

V – implementar uma política fundiária e de uso e ocupação do solo que garanta o acesso à terra para as funções sociais da cidade e proteja o patrimônio ambiental e cultural;

IX   –  ampliar  e requalificar  os espaços públicos, as áreas verdes e

permeáveis e a paisagem;

X   –  proteger   as   áreas   de   preservação   permanente, as   unidades de conservação, as áreas de proteção dos mananciais e a biodiversidade;

XI – contribuir para mitigação de fatores antropogênicos que contribuem para a mudança climática, inclusive por meio da redução e remoção de gases de efeito estufa, da utilização de fontes renováveis de energia e da construção sustentável, e para a adaptação aos efeitos reais ou esperados das mudanças climáticas;

XII – proteger o patrimônio histórico, cultural e religioso e valorizar a memória, o sentimento de pertencimento à cidade e a diversidade;

Art.   8º – Para garantir um desenvolvimento urbano sustentável e equilibrado entre as várias visões existentes no Município sobre seu futuro, o Plano Diretor observa e considera, em sua estratégia de ordenamento territorial, as seguintes cinco dimensões:

II   –  a dimensão  ambiental,   fundamental  para garantir   o necessário equilíbrio entre as áreas edificadas e os espaços livres e verdes no interior da área urbanizada e entre esta e as áreas preservadas e protegidas no conjunto do Município;

V   –  a   dimensão   cultural, fundamental   para   garantir   a   memória,   a identidade e os espaços culturais e criativos, essenciais para a vida das cidadãs e dos cidadãos.

 

A proteção ao patrimônio cultural é dimensão estruturante no Plano Diretor e está prevista em diversas figuras especiais como as Zonas Especiais de Preservação Cultural – ZEPECs (artigos 61 e seguintes), os instrumentos de proteção ao patrimônio (artigos 172 e seguintes), os polos de economia criativa (artigo 182 e seguintes), o Sistema Municipal de Cultura (artigos 310 e seguintes), os Territórios de Interesse da Cultura e da Paisagem – TICPs (artigos 314 e seguintes) e entre outras.

 

O direito é uma ferramenta de intermediação das relações sociais e deverá conciliar direitos aparentemente em contraposição: a fruição irrestrita da propriedade e a proteção ao patrimônio cultural e acesso à cultura. Isso também deverá ser observado pelo Poder Judiciário.

 

Considerações Finais

O caso da liminar que vedou a pintura dos grafites é interessante pois discute a contraposição entre preservação do patrimônio municipal e a própria política cultural e urbana da Prefeitura. Por certo, esse assunto ainda merece maior aprofundamento teórico. Neste artigo, trouxemos apenas algumas considerações para auxiliar no debate e, quem sabe, na conscientização sobre a importância e possibilidade de participação do cidadão na defesa do patrimônio público.

 

Abraços e boas ideias!

 

[1] Conferir: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1858612-justica-proibe-doria-de-cobrir-grafite-sem-previa-consulta-ao-conpresp.shtml

[2] O Plano Nacional de Cultura foi instituído pela Lei n.º 12.343, de 2010, que prevê como um de seus objetivos “proteger e promover o patrimônio histórico e artístico, material e imaterial” (artigo 2º, inciso II) e como competência do Poder Público “garantir a preservação do patrimônio cultural brasileiro, resguardando os bens de natureza material e imaterial, os documentos históricos, acervos e coleções, as formações urbanas e rurais, as línguas e cosmologias indígenas, os sítios arqueológicos pré-históricos e as obras de arte, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência aos valores, identidades, ações e memórias dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (artigo 3º, inciso VI).

[3] Cf. VARELLA, Guilherme. Plano Nacional de Cultura: Direito e políticas culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2014. SOUZA, Allan Rocha de. Os direitos culturais e as obras audiovisuais cinematográficas: entre a proteção e o acesso. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor. Rio de Janeiro, 2010. REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL. Direitos Culturais: um novo papel. Número 11, Jan./abr, 2011. São Paulo: Itaú Cultural, 2011.

[4] José Afonso da SILVA. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 150.

[5] Sônia Rabello de CASTRO. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. P. 5.

[6] Édis MILARÉ. Direito do ambiente. Op. Cit. p. 581

[7] José Rubens Morato LEITE. Patrick de Araújo AYLA. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial: Teoria e prática. 5ª Edição. São Paulo: RT, 2012. p. 155-157.

[8] José Afonso da SILVA. Apud Rodolfo de Camargo MANCUSO. Ação Popular. 7ª Edição. São Paulo: RT, 2011. P. 151, grifos nossos.

[9] Rodolfo de Camargo MANCUSO. Ação Popular. 7ª Edição. São Paulo: RT, 2011. P. 188-189.

[10] Fernanda Passanha do Amaral GURGEL. A Ação Popular Constitucional como instrumento de proteção ao patrimônio histórico e cultural brasileiro. In: Ana Flávia MESSA. José Carlos FRANCISCO (orgs.) Ação Popular. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 203, grifos nossos.

[11] Hugo Nigro MAZZILI.  A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo (meio  ambiente,  consumidor  e patrimônio  cultural). 3ª Edição. São  Paulo: RT, 1991, p. 85-86, grifos nossos.

[12] Hugo  Nigro MAZZILLI. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 5ª edição. São Paulo: RT, 1993, pág. 102

[13] Maria Sylbia Zanellla DI PIETRO. Direito Administrativo. 21ª Edição. São Paulo: Atlas, 2008. P. 259.

[14] Fernando Dias Menezes de ALMEIDA. Ação popular como instrumento de proteção do patrimônio cultural. In: Ana Flávia MESSA. José Carlos FRANCISCO (orgs.) Ação Popular. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 231.

[15] Inês Virgínia Prado Soares. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 368.

[16] Fernanda Passanha do Amaral GURGEL. A Ação Popular Constitucional como instrumento de proteção ao patrimônio histórico e cultural brasileiro. In: Ana Flávia MESSA. José Carlos FRANCISCO (orgs.) Ação Popular. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 204-205.

 

Foto: Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo (RS).

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