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Lei Cortez: Uma breve visão sobre como o preço fixo do livro pode beneficiar os leitores e a indústria editorial como um todo

A Comissão de Cultura e Educação do Senado aprovou, no último dia 29 de outubro, o Projeto de Lei n.º 49/2015, conhecido como “Lei Cortez”, que institui a política nacional de fixação do preço do livro no Brasil, estabelecendo regras para sua comercialização e difusão, e definindo um desconto máximo de 10% sobre o preço de capa durante o período de um ano, a partir de sua data de lançamento.

Enquanto na avaliação de alguns parlamentares o texto representa “um entrave burocrático contra a livre concorrência”, argumentando que se trata de uma tese “absolutamente anacrônica”, que acabaria tornando o preço do livro mais caro para o consumidor final, acredito que a questão é mais complexa do que parece ser.

Em muitos países da Europa, as políticas de preço fixo do livro foram concebidas para desencorajar os grandes descontos dados nos best-sellers, promovendo simultaneamente uma concorrência equitativa entre os vendedores de livros – sejam eles e-commerces, marketplaces ou livrarias físicas –, além de promover um ambiente que beneficia a publicação de uma maior diversidade de títulos.

Com efeito, acredita-se que a ideia de fixar o preço dos livros surgiu na França frente a uma cultura de massas que se tornava hegemônica nos anos 1970, quando o mercado editorial se viu tomado por best-sellers que eram vendidos nas grandes redes de supermercados com enormes descontos. Nessa mesma época, a ascensão do modelo de comércio multimidiático fundado pela Fnac viria ameaçar de uma vez por todas a tranquilidade das editoras e livrarias tradicionais que compunham a cena da vida parisiense e provinciana. Diante desse cenário de crise, a chamada “Lei Lang”, que entrou em vigor em 1981, representou uma resposta política a um problema econômico, objetivando salvar as livrarias independentes, tão vitais para a cena cultural francesa. 

Em estudo recente publicado no Journal of Competition Law and Economics da Universidade de Cambridge na Inglaterra, possivelmente o primeiro estudo a avaliar o impacto das leis de fixação de preços comparativamente entre países europeus, o economista Rhys Williams concluiu que os países com políticas de preço fixo registram vendas de livros mais elevadas do que os países sem essas políticas, sem qualquer efeito perceptível no preço médio dos livros. Dado que as vendas de livros têm, em geral, diminuído ao longo do tempo, as conclusões são mais precisas quando se afirma que as políticas de preços fixos “resultam numa diminuição das vendas de livros inferior à que se verificaria sem tal política”.

Para citar um dos exemplos mais reveladores do estudo de Rhys Williams, a análise do caso da Alemanha e do Reino Unido é bastante esclarecedora. Segundo o economista, entre 1995 e 2001, enquanto o número de livrarias independentes no Reino Unido diminuiu cerca de 12% após a abolição do sistema de preço fixo, na Alemanha, onde os preços fixos vigoram, registrou-se uma diminuição de apenas 3% no período de 1995 a 2002. Além disso, a Alemanha tem também uma concentração de mercado muito menor, o que por si só estimula a procura por livros, consequentemente fomentando a leitura e o hábito de ler. No Reino Unido, a Amazon tem uma quota de mercado de cerca de 45 a 50%, enquanto as pequenas livrarias têm apenas cerca de 5 a 10%. Na Alemanha, o comércio de livros on-line representa apenas cerca de 20% das vendas, enquanto cerca de 30% são gerados em livrarias independentes e cerca de 20% em grandes redes.

Como disse Marcos da Veiga Pereira, sócio da Sextante e ex-presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), “uma indústria editorial saudável depende de uma rede de livrarias capilarizada. […] Temos que convencer o cidadão de que, mais importante do que ele ter a possibilidade de comprar o livro com um desconto muito grande, é ele ter [acesso a] um acervo; é ele ter a publicação de mais ideias”.

É fácil visualizar por que a política de preços fixos preserva a capilaridade de livrarias, uma vez que a concorrência se desloca da competição pelo preço mais baixo para a qualidade do serviço, já que os descontos predatórios praticados pelos grandes players ficam fora do jogo. Menos óbvio é o motivo pelo qual a presença das livrarias físicas – tanto as de rede, mas talvez mais ainda, as independentes – contribui para o que se define como “bibliodiversidade”, conceito que parece ter sido cunhado no Chile no final na década de 1990 e defende a expansão da circulação de livros e publicações que apresentam para a sociedade múltiplas vozes e visões de mundo.

As livrarias desempenham papel fundamental na cadeia produtiva do livro, além de representarem espaços de convivência e troca de experiências entre leitores, livreiros, autores e editores. É numa livraria, navegando as prateleiras ou sob indicação do livreiro, que o leitor entra em contato com livros aos quais provavelmente não teria acesso buscando na internet. A experiência de ir a uma livraria física é crucial na formação do leitor, na expansão de seus gostos e interesses literários e na inclusão de novos leitores. Segundo Luiz Schwarcz, presidente do Grupo Companhia das Letras, “a gente sabe que o browser gera um número muito menor de vendas do que um cliente que vai a uma livraria”. São experiencias de compra diferentes. Na Alemanha, por exemplo, estudo liderado por Georg Götz da Universidade Justus Liebig, estimou que, quando uma livraria fecha, são vendidos cerca de 6100 livros a menos anualmente. Isto significa que há apenas uma migração parcial dos compradores de livros físicos para o comércio online e para os livros eletrônicos. E a queda do número de leitores certamente é o que provocará, no longo prazo, a inviabilidade da publicação dos títulos menos rentáveis e a subida do preço dos livros como um todo.

A questão do preço do livro, diga-se de passagem, é matéria complexa e exige uma abordagem interdisciplinar. Estão em jogo tanto as condições do ecossistema editorial, que influenciam os custos de produção e de distribuição do produto, quanto fatores menos palpáveis, que definem seu valor simbólico. A este respeito, recomendo fortemente a leitura do texto de André Conti, um dos fundadores da editora Todavia, que destrincha os custos envolvidos na publicação de um livro, e explica por que ainda vivemos em um país em que se valoriza a leitura, mas não o livro.  

Gosto muito de uma campanha veiculada na França, em 2021, destinada a celebrar os quarenta anos da Lei Lang, que diz: “A qualidade de nossas livrarias é única. O preço do livro também”. É claro que a Lei Cortez não se apresenta como uma panaceia para todos os males do ecossistema editorial brasileiro. De toda forma, ela já prestará um grande serviço se vier a preservar as livrarias existentes, estimular a abertura de novas livrarias, considerando o caráter rarefeito e desigual de sua distribuição país, sendo, portanto, de suma importância esclarecer ao grande público o impacto positivo que pode vir a ter, considerando que as questões relacionadas ao acesso ao livro e à leitura certamente precedem a barreira do preço.

Ademais, não é pouco lembrar que o argumento do menor preço para o consumidor somente é aplicável em um primeiro momento, no qual os grandes conglomerados praticam dumping (preço abaixo do mercado e às vezes do custo) para diminuir a concorrência. Após a formação de oligopólios ou monopólios, tais agentes teriam total controle da cadeia de preços no seu mercado de atuação. Logo, estamos tratando não apenas de uma questão de diversidade cultural das livrarias e editoras, como da preservação da livre concorrência no mercado – bem igualmente protegido no ordenamento brasileiro –, coibindo abusos de poder econômico.

Por fim, e não menos importante, é importante lembrar que a “livre iniciativa” é um dos fundamentos constitucionais da ordem econômica brasileira (art. 170), porém, não é um fim em si mesmo. O mercado brasileiro deve ser instrumentalizado para o cumprimento de outros objetivos constitucionais como o acesso à cultura e o desenvolvimento cultural (art. 215 e 219 da Constituição). Nesse sentido, o Estado pode e deve adotar instrumentos jurídicos visando corrigir distorções de poder econômico, em prol da garantia da diversidade cultural, do acesso à cultura e da livre concorrência.

Foto de Patrick Tomasso na Unsplash

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