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Direito Econômico da Inteligência Artificial: Contribuições para o debate na Propriedade Intelectual

No final de março e começo de abril, as redes sociais foram inundadas por versões de fotografias estilizadas como animações do estúdio japonês Ghibli. Fundada em 1985, a companhia tornou-se um ícone do cinema mundial pela qualidade de suas produções, inclusive, com duas obras ganhadoras de Oscar: “A Viagem de Chihiro” e “O Menino e a Garça”. Uma das grandes características dos estúdios Ghibli é o tratamento artesanal do desenho, feito preponderantemente à mão. Um dos produtores da casa, Toshio Suzuki, já afirmou que somente conseguem produzir um minuto de animação por mês. No filme “Vidas ao Ventos”, uma cena de 4 segundos levou mais de um ano para ser produzida, dado o capricho e dedicação que queriam empregar em uma multidão de pessoas.

Foi justamente o estilo de animação desse estúdio que foi emulado e impulsionado por uma nova atualização do ChatGPT. Assim, a partir de comandos simples, os usuários puderam transformar suas fotografias em desenhos. Poucos dias depois, a OpenAI, empresa responsável por esta ferramenta de IA, havia limitado a função, argumentando uma sobrecarga nos seus sistemas.

Esse episódio reaqueceu os debates acerca do uso de conteúdos protegidos pelos direitos autorais em inteligências artificiais. Afinal, as empresas proprietárias dessas ferramentas de inteligência artificial não buscam autorização junto aos artistas para o treinamento, nem fazem quaisquer formas de pagamento pelos conteúdos produzidos com algum tipo de referência ou aproveitamento de seus trabalhos.

De fato, quando tratamos de modelos de inteligência artificial generativa, ou seja, aquela capaz de gerar novos conteúdos como fotos, textos, vídeos e até músicas, há uma tendência natural de se problematizar as questões a partir do viés da propriedade intelectual, mais precisamente, dos direitos autorais e conexos. Contudo, essa categoria de direitos pode ser insuficiente para lidar com os desafios sociais, culturais e econômicos cada vez mais complexos trazidos pelas novas tecnologias.

Isso porque, historicamente, os direitos autorais surgem de concepções jus filosóficas de matrizes iluministas, a partir da visão do indivíduo como criador da obra. O regime jurídico de proteção está centrado na relação do autor com sua obra, nos países da tradição do droit d’auteur francês, ou do direito de reprodução da obra, na vertente do copyright. Em qualquer dos casos, estamos lidando com uma premissa de proteção jurídica essencialmente individualizada, ou melhor, individualista.

Por esse motivo, outros ativos intangíveis criados de modo colaborativo, como aqueles concebidos por comunidades tradicionais e povos originários sempre estiveram ao largo dos debates envolvendo a proteção pelos direitos autorais. Para esse tipo de criação foram concebidos outros institutos jurídicos. Do mesmo modo, ao estarem centradas na perspectiva do indivíduo (da pessoa

humana), a própria ideia de pessoas jurídicas, animais, computadores ou inteligências artificiais como autores das obras não encontra respaldo na maior parte das legislações.

Ocorre que as novas ferramentas de inteligência artificial não apresentam problemas de natureza essencialmente individual, mas sim coletiva. Para poderem funcionar, as IAs generativas incorporam em seu aprendizado um enorme volume de obras, de diferentes autores, de diferentes países e, portanto, diferentes sistemas jurídicos.

Neste caso, estamos tratando do aproveitamento de centenas de milhares ou milhões de obras que são aproveitadas no treinamento das IAs. Esse aprendizado não se dá, necessariamente, com o uso direto das obras protegidas pelo direito autoral. A ferramenta pode apenas usar certos dados ou elementos presentes na obra, inclusive, que sequer são protegidos pelo direito autoral, como é justamente o caso do estilo artístico dos estúdios Ghibli. Além disso, as empresas que desenvolvem as atuais ferramentas de IA alegam que o uso de obras para treinamento não configuraria hipótese de uso não autorizado, ou seja, violação de direito, estando resguardadas pelo chamado “uso justo” (fair use, no copyright). Isso não significa que, na perspectiva da economia política, o “modelo seja justo”.

A ponderação e sopesamento entre interesses particulares e coletivos no campo da propriedade intelectual não é recente. Na verdade, desde a primeira norma de proteção autoral, o Estatuto da Rainha Ana (Copyright Act 1709 8 Anne c.19), já se tinha uma compreensão de que o interesse particular dos titulares de direito deveria ser conciliado com outros valores sociais e econômicos igualmente relevantes. Nesse sentido, a norma previa, por exemplo, a obrigatoriedade de envio de cópias para uso da Biblioteca Real, como medida ligada à viabilização do acesso, e a possibilidade de denúncia aos Lordes britânicos sobre editores que colocassem livros a vendas a preços exorbitantes.

No entanto, para tratar dos problemas estruturais e macroeconômicos trazidos com a inteligência artificial devemos ir além dos institutos da propriedade intelectual, tornando-se útil, ou melhor, necessário incorporar ao debate o Direito Econômico, enquanto conjunto de técnicas jurídicas voltadas a disciplinar a vida econômica. É a partir da metodologia do Direito Econômico que podemos analisar como a inteligência artificial está transformando as formas de circulação e apropriação do excedente econômico, e, pela dogmática, como é possível ordenar condutas em prol de objetivos positivados.

Nesta ocasião, quero pontuar ao menos três reflexões sobre a inteligência artificial a partir do Direito Econômico: a questão tecnológica, o direito concorrencial e o patrimônio cultural.

Em primeiro lugar, precisamos discutir a própria tecnologia empregada nas inteligências artificiais. O nascimento e difusão das ferramentas de inteligência artificial não é um fenômeno espontâneo no mundo e decorre da própria maneira como se organizam as relações de dominação econômica e como se estruturam as fronteiras tecnológicas. Não por acaso, a origem das empresas de IA está justamente nos Estados Unidos e China, principalmente. São esses países do centro do capitalismo que vão definir muitos dos padrões de mercado das IAs que veremos nos próximos anos.

No caso do Brasil, sem um planejamento em prol do desenvolvimento de tecnologias nacionais, vislumbraremos o estreitamento das relações de dependências com tais inovações estrangeiras. Essa relação de dependência tecnológica impõe transformações em nossa organização econômica, social e cultural que não necessariamente guardam relação com a trajetória histórica brasileira ou com os interesses nacionais. Vale esclarecer que as ferramentas de inteligência artificial, como outras tantas tecnologias, não são essencialmente neutras, tendo seu funcionamento direcionado de acordo com os interesses de seus proprietários. Assim, o resultado produzido pelas IA podem servir para oferecer bens e serviços, transmitir certas visões de mundo ou induzir comportamentos de modo geral.

Essa questão toca diretamente o tema de nossa soberania, um dos fundamentos da nossa república e princípio da ordem econômica, nos termos dos artigos 1º, inciso I, e 170, inciso I, ambos da Constituição Federal. Em outras palavras, o advento de tecnológicas próprias também está relacionado a nossa capacidade de autodeterminar os rumos do país, de decidir a partir dos nossos próprios interesses e valores nacionais. Aliás, não podemos esquecer que a nossa Constituição também impõe ao Estado o dever de promoção e incentivo do desenvolvimento científico e tecnológico (artigo 218), além de instrumentalizar o mercado em prol de nossa autonomia tecnológica (artigo 219).

Em outras palavras, a necessidade de atuação do Estado, seja por instrumentos de fomento, tributação, criação de estatais, regulação do mercado ou revisão de normas de propriedade intelectual, decorre de um comando constitucional que visa assegurar nossa soberania e desenvolvimento tecnológico.

Aliás, uma política pública voltada às ferramentas de inteligência artificial também é desejável enquanto dimensão estratégica de desenvolvimento econômico, sobretudo considerando-se que há estimativas de que as ferramentas de inteligência artificial irão contribuir com um aumento de 7% no PIB mundial até 2030.

Avençando para o segundo tópico, devemos refletir que o advento das ferramentas de IA trazem novos desafios também no campo do direito concorrencial.

De partida, observamos que há uma tendência de aproximação e integração entre as novas empresas de IA com as Big Techs, os grandes conglomerados empresariais atuantes no mercado de tecnologia. O desenvolvimento de ferramentas de IA demanda altos investimentos na estruturação de servidores (computadores, chips, centrais de dados, profissionais qualificados etc.), bem como um grande volume de dados para treinamento, como já mencionado. Tais requisitos podem constituir verdadeiras barreiras de entrada para novos agentes no mercado. Mesmo havendo recursos, há estudos que indicam que a fabricação e entrega de processadores da Nvidia, com configuração capaz de operar as IAs, já demorara meses. Por outro lado, Google, Meta, Amazon e outras big techs partem de certa vantagem competitiva pela quantidade de obras, informações e dados já acumulados em seus serviços e com seus

usuários – além da infraestrutura já montada com servidores etc. Não por acaso, as autoridades de proteção à concorrência ao redor do mundo estão monitorando os efeitos desse mercado de perto.

Além disso, é também no campo da concorrência que o assunto do aproveitamento de obras protegidas por direitos autorais passa a ganhar outros contornos. A maneira como as IAs generativas funcionam hoje poderiam configurar condutas anticompetitivas e infração à ordem econômica – nos termos da Lei nº 12.529/11. Tomemos como exemplo, novamente, o caso de ilustrações produzidas nas IAs generativas. No caso dos estúdios Ghibli, a empresa não atua diretamente com serviços ao público em geral. Porém, muitos desenhistas já narram uma diminuição de clientela, que passou a utilizar tais ferramentas para criar suas próprias imagens.

Em fevereiro deste ano, o caso Thomson Reuters v. ROSS Intelligence representou uma das primeiras decisões envolvendo a violação de direitos autorais e o uso de inteligência artificial. Neste caso, a ROSS passou a produzir relatórios jurídicos a partir da base de dados e relatórios da própria Thomson. Além do aspecto autoral em si, o juiz ponderou o impacto que a conduta tinha no mercado da Thomson. Mais recentemente, em 1º de maio, um juiz da corte de San Francisco, ao realizar a audiência preliminar de um processo envolvendo vários autores contra o Meta e o uso de sua IA, sinalizou justamente que o impacto no mercado de trabalho dos criadores deve ser considerado na avaliação do processo.

Na Lei de Propriedade Industrial (Lei n.º 9.279/96), o artigo 195 prevê ao menos duas condutas que configuram crime de concorrência desleal e que poderiam ser suscitadas ao se questionar o aprendizado e criações das IAs generativas: empregar meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem (inciso III); e usar expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos (inciso IV).

O Projeto de Lei 2338/2023, que propõe a regulação da IA, coloca a perspectiva concorrencial como um dos requisitos para que não se configure a violação de direitos autorais em processos de treinamento. A saber: “Art. 63. Não constitui ofensa aos direitos de autor e conexos a utilização automatizada de conteúdos protegidos em processos de mineração de textos e dados para os fins de pesquisa e desenvolvimento de sistemas de IA por organizações e instituições científicas, de pesquisa e educacionais, museus, arquivos públicos e bibliotecas, desde que observadas as seguintes condições: I – o acesso tenha se dado de forma lícita; II – não tenha fins comerciais; III – a utilização de conteúdos protegidos por direitos de autor e conexos seja feita na medida necessária para o objetivo a ser alcançado, sem prejuízo dos interesses econômicos dos titulares e sem concorrência com a exploração normal das obras e conteúdos protegidos.”

Em muitos países, as discussões voltadas à proteção normativa dos titulares caminham no sentido de se garantir a possibilidade do artista de retirar seu trabalho da base de aprendizado da IA e do pagamento de uma justa remuneração pelas empresas. Evidentemente, há uma série de dúvidas a respeito da aplicabilidade dessa última proposta, uma vez que nem sempre será fácil identificar se um

prompt (um comando) do usuário fez com que a inteligência artificial use uma obra de um artista na sua entrega. Uma proposta que se discute, por exemplo, é criar um regime de pagamento quando o usuário cita expressamente um artista em seu pedido. Logo, pedir que uma foto seja transformado em um “desenho ao estilo Ghibli”, poderia gerar algum pagamento à respectiva empresa.

A ideia de remuneração dos titulares de direitos autorais foi hoje incorporada no referido projeto de Lei: “Art. 65. O agente de IA que utilizar conteúdos protegidos por direitos de autor e conexos em processos de mineração, treinamento ou desenvolvimento de sistemas de IA deve remunerar os titulares desses conteúdos em virtude dessa utilização, devendo-se assegurar: I – que os titulares de direitos de autor e conexos tenham condições efetivas de negociar coletivamente, nos termos do Título VI da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei dos Direitos Autorais), ou diretamente a utilização dos conteúdos dos quais são titulares, podendo fazê-lo de forma gratuita ou onerosa; II – que o cálculo da remuneração a que se refere o caput considere os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e elementos relevantes, tais como o porte do agente de IA e os efeitos concorrenciais dos resultados em relação aos conteúdos originais utilizados; III – a livre negociação na utilização dos conteúdos protegidos, visando à promoção de ambiente de pesquisa e experimentação que possibilite o desenvolvimento de práticas inovadoras, e que não restrinjam a liberdade de pactuação entre as partes envolvidas, nos termos dos arts. 156, 157, 421, 422, 478 e 479 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e o art. 4º da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei dos Direitos Autorais).

Não obstante a importância de se pensar em mecanismos de distribuição da renda apropriada pelas empresas de IA, a partir do uso de trabalhos dos artistas, é possível que estes institutos de pagamento compulsório de royalties (remuneração) sejam insuficientes para lidar com as transformações estruturais que tais tecnologias possam operar no mercado. Se estamos tratando de uma possível diminuição de mercado para outros agentes, sobretudo artistas independentes, há outros temas que são relevantes e merecem atenção como a proteção previdenciária e de seguridade social.

Vale observar que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em maio do ano passado, encaminhou contribuições para o Projeto de Lei 2338/2023. Porém, o CADE não tratou da problemática da propriedade intelectual e dos efeitos concorrenciais.

Por fim, queremos encerrar nossa reflexão lembrando que as obras brasileiras não são apenas protegidas pelo direito autoral (de modo individualizado), mas constituem e integram o patrimônio cultural brasileiro no seu conjunto. Ora, o titular desse patrimônio cultural é o povo brasileiro e a ele cabe colher os frutos de toda a sua riqueza, identidade e diversidade. Destarte, quando falamos do aproveitamento em massa de obras e conteúdos nacionais pelas plataformas nacionais, estamos falando do uso não autorizado de nosso patrimônio coletivo, sem autorização, sem que sejam revertidos quaisquer benefícios para nossa sociedade e mercado. Essa dimensão, também atrelada à soberania, como dito anteriormente, deve perpassar as futuras discussões de regulação da IA no país.

Foto de Igor Omilaev na Unsplash

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