Vivemos atualmente uma avalanche de questionamentos relacionados à popularização da Inteligência Artificial Generativa, com o uso cada vez mais disseminado de sistemas como ChatGPT, para geração de textos, ou MidJourney, para geração de imagens. Se o algoritmo é capaz de criar texto, imagem, música ou vídeo, ele então é um autor? Daí surgem dúvidas bem concretas que impactam o trabalho e o rendimento de muita gente: de quem é o Direito Autoral nesses casos? E, ainda, se esses sistemas são alimentados com gigabytes de conteúdo disponível na Internet, como fica então o problema da mineração não autorizada de dados protegidos para o treinamento da inteligência artificial?
As questões em discussão são muitas e ainda estamos longe de chegar a um consenso ou, minimamente, ao estabelecimento de regramentos que possam orientar não só criadores, mas toda a cadeia produtiva envolvida em vários setores, como na Indústria Criativa e no Jornalismo, por exemplo. Em função disso, temos visto surgirem muitas disputas, algumas pela via judicial, outras ainda por meio de protestos, entre quem cria e identifica o uso de seus dados nos outputs da Inteligência Artificial, sem que tenham sido consultados, e as empresas que desenvolvem esses sistemas, como a OpenAI, que em geral alegam que fazem isso amparadas no princípio de fair use e do interesse coletivo, o que pode ser questionável.
Todos esses pontos estão na pauta do dia e são importantíssimos. Mas vamos nos deter, aqui, na primeira pergunta que talvez seja a que ainda causa mais estranhamento: é possível conceber uma autoria de natureza maquínica? Ou seria a autoria uma prerrogativa exclusivamente humana que tem a ver com uma experiência subjetiva única que nenhuma máquina poderia ser capaz de simular ou imitar? O que é afinal a autoria?
Para refletir sobre essas questões, a pista deixada por Michel Foucault na palestra “O que é um autor?”, proferida na Société Française de Philosophie em 1969, pode nos esclarecer: a autoria tem uma história, e sua configuração e a compreensão sobre o seu sentido variaram em diferentes épocas e culturas. Então, podemos dizer que atualmente estamos assistindo a mais uma dessas variações; uma variação de grande monta sem dúvida, pois nunca houve uma mudança que interferisse de forma tão direta no processo autoral e fosse implantada com tanta rapidez e tão massivamente. Talvez um aspecto que aumente nosso estranhamento seja o fato de que o processo autoral agora está não só intrinsicamente ligado à interação com um objeto técnico, mas seu produto final é por ele mesmo gerado.
Para diminuir esse estranhamento, pode ser interessante observar que outras máquinas já participaram dos processos criativos humanos. A fotografia, por exemplo, quando surgiu, também foi vista como uma ameaça à pintura, tida na época como a “verdadeira arte humana”. Mas, e hoje? Como vemos a fotografia e os fotógrafos? Como não reconhecer a existência da fotografia artística a partir do desenvolvimento de toda uma técnica sofisticada que possibilita a produção de obras memoráveis? Certamente, podemos dizer que o trabalho do fotógrafo se assemelha ao traço do pintor, pois somos capazes de identificá-lo! Cada um decifra a caixa-preta do aparelho fotográfico à sua maneira, fazendo com que ofereça outputs únicos combinando luz, sombra, contornos, brilhos, cores, profundidade e enquadramento, que resultam em obras de grande valor artístico. Pensemos em Sebastião Salgado, que nos deixou há pouco. Não é difícil identificarmos uma obra sua, embora ela seja na verdade o output de uma máquina.
Do mesmo modo, hoje já vemos artistas que trabalham no deciframento da caixa-preta da inteligência artificial, produzindo obras únicas, de grande impacto visual e de sentido, pois estão se valendo dessas “máquinas” como aliados ou instrumentos que vão participar do seu processo criativo. A construção de um prompt para uma Inteligência Artificial Generativa, já sabemos, não é algo tão trivial. É ali que os artistas gastam horas, dias ou semanas na tentativa e erro, a fim de decifrar sua gramática para alcançar o resultado almejado, com todas as nuances e sutilezas que se quer alcançar. A recente exposição exibida no Centro Cultural Fiesp “Venenosas, Nocivas e Suspeitas”, da artista, professora e pesquisadora Giselle Beiguelman, é um exemplo bem ilustrativo desse sofisticado trabalho conjunto com os sistemas de inteligência artificial.
Então, voltamos à pergunta: quem é afinal o autor nesse caso: o artista ou a máquina? Embora a Inteligência Artificial Generativa seja recente, o algoritmo já está entre nós tem um bom tempo. Tempo suficiente para que artistas e teóricos tenham investido sua arte e seu pensamento para compreendê-los. Por isso, já temos algumas pistas que nos ajudam a pensar nessa interação humano-máquina na criação de obras: meta-autoria e autoria ciborgue, por exemplo, são alguns dos termos propostos para pensar essa nova dinâmica. Mas, sem dúvida, ainda há muito para refletir sobre essa complexa interação entre o ser humano e a inteligência artificial no processo criativo. Alguns autores nos dão pistas pelas quais podemos avançar.
Por fim, e não menos importante, temos pela frente o grande desafio de regular essa nova tecnologia e devemos fazê-lo com certa rapidez, enquanto ela ainda está em desenvolvimento, mas já exige que sejam definidos parâmetros para sua existência, a fim de que direitos não sejam solapados.
É preciso garantir que os seres humanos tenham seus direitos bem equilibrados em face do inexorável avanço tecnológico. Refletir sobre o que é a autoria, o que ela já foi e como está se transformando pode nos ajudar a encontrar o caminho mais apropriado, justo e sustentável para esta regulação.