Em outubro de 2019, foi apresentado o Projeto de Lei n.º 5.674, de autoria do Deputado Marcelo Moraes (PTB/RS), que propõe uma alteração na Lei de Direitos Autorais. A proposta é acrescentar uma nova hipótese de possibilidade de uso de obras sem a necessidade de prévia e expressa autorização de seus titulares.
Segundo a justificativa do Projeto, o turismo é um setor econômico de muita relevância para o país, inclusive para comerciantes e artesãos, que tiram seu sustento da fabricação e venda de suvenires feitos a partir de monumentos e obras expostas em locais públicos. Porém, entende o senhor Deputado que a legislação brasileira:
“exige que o comércio dessas reproduções dependa de autorização prévia e expressa do detentor do direito autoral. Desta forma, inviabiliza-se financeiramente a atividade legal de milhares de pessoas que vivem da divulgação de atrativos turísticos. Em consequência, apena-se a própria indústria turística brasileira, já que as reproduções desempenham importante função na divulgação turística nacional e internacional.
Desta forma, nossa iniciativa busca excepcionar da ofensa aos direitos autorais a exploração comercial de reprodução, estilizada ou não, em fotografias, miniaturas ou adereços, de monumentos ou edificações, desde que efetuada com fins de divulgação turística. Acreditamos que a adoção desta medida trará a tranquilidade legal e financeira para os milhares de brasileiros e de brasileiras que, dia após dia, reproduzem e dão a conhecer nossos inúmeros atrativos turísticos.” [1]
Assim, o projeto propõe acrescentar o seguinte inciso ao artigo 46 da Lei de Direitos Autorais: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: IX – a exploração comercial de reprodução, estilizada ou não, em fotografias, miniaturas ou adereços, de monumentos ou edificações, desde que efetuada com fins de divulgação turística.“
A proposta retoma uma antiga questão sobre o regime jurídico das obras expostas em espaços públicos. A rigor, a Lei de Direitos Autorais já possui uma previsão que trata desse tema com a seguinte redação: “Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.”
Na opinião da autoralista Eliane Abrão:
“A finalidade dada ao uso livre da reprodução há de ter caráter pessoal e não lucrativo, como de resto é a regra geral na utilização de quaisquer obras protegidas. No caso de uso publicitário, de uma obra situada em logradouro público, ou de uma obra audiovisual destinada à exibição pública exige-se a prévia autorização do artista que a confeccionou, ou a de seus herdeiros, para integrar o anúncio ou a campanha publicitária, sob pena de o uso não autorizado dar origem ao enriquecimento sem causa.” [2]
Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de que a previsão do artigo 48 não justifica o uso comercial da obra por terceiros:
“RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS AJUIZADA POR ARTISTA PLÁSTICO. ESCULTURA EDIFICADA EM LOGRADOURO PÚBLICO. REPRESENTAÇÃO DA OBRA, SEM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR, EM INGRESSOS DE PARTIDA DE FUTEBOL ENTRE A SELEÇÃO BRASILEIRA E A
SELEÇÃO VENEZUELANA (ELIMINATÓRIAS DA COPA DO MUNDO FIFA 2010). […] 4. Nada obstante, o artigo 48 da Lei 9.610/98 autoriza que a obra de arte situada permanentemente em logradouro público seja livremente representada por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais, instituindo, portanto, expressa limitação ao direito patrimonial do artista plástico. Assim, a reprodução meramente ilustrativa da obra situada em local destinado ao uso comum de toda a população (tais como praças, jardins, passeios, hortos, avenidas, ruas, museus, entidades culturais) prescinde de autorização prévia do autor, tendo em vista seu papel eminentemente cultural, capaz de contribuir com a evolução social e
o progresso humano. 5. A exceção prevista no supracitado dispositivo legal não autoriza, contudo, o aproveitamento subsequente da representação da obra para fins comerciais (diretos ou indiretos), sem a prévia anuência do autor, ressalvada, entretanto, a hipótese em que o ato de reprodução em si consubstanciar evidente divulgação do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico ou paisagístico. Precedente da Quarta Turma: REsp 951.521/MA, Rel. Ministro Aldir Passarinho Júnior, julgado em 22.03.2011, DJe 11.05.2011.” (STJ, REsp 1438343 / MS, Quarta Turma, Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 22/02/2017)
“CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS. DIREITOS AUTORAIS. OBRA EM LOGRADOURO PÚBLICO. REPRODUÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO. CABIMENTO. […] II. A obra de arte colocada em logradouro da cidade, que integra o patrimônio público, gera direitos morais e materiais para o seu autor quando utilizado indevidamente foto sua para ilustrar produto
comercializado por terceiro, que sequer possui vinculação com área turística ou cultural.” (STJ, REsp 951521 / MA, Quarta Turma, Relator Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJe 11/05/2011)
Logo, o Projeto de Lei caminha em um sentido diferente da interpretação do Superior Tribunal de Justiça sobre o regime de proteção autoral para obras em logradouro público. Em nossa opinião, parece haver uma pressuposição de que a necessidade de prévia autorização dos titulares do direito estaria inviabilizando essa atividade artesanal. Não encontramos, porém, ao menos em uma primeira pesquisa, algum indicador nesse sentido.
Ademais, é bom ressaltar que o texto do projeto, tal como proposto, não trata expressamente de atividade artesanal, mas sim aqueles usos com “fins de divulgação turística”, o que justificaria, por exemplo, a exploração comercial em escala industrial de obras de terceiros sem qualquer contrapartida financeira – o que também não parece adequado.
É evidente que o interesse dos autores e demais titulares de direitos autorais deve ser conciliado ao interesse público de acesso à cultura, promoção do turismo, liberdade econômica etc. Porém, o debate e a produção legislativa poderiam ir além da mera previsão de cláusulas de exceção à proteção autoral e prever, por exemplo, hipóteses de licenciamento compulsório e/ou parâmetros de licenciamento com base nas finalidades de utilização pretendida. Nossa criatividade e imaginação institucional podem fornecer respostas mais adequadas e complexas aos conflitos contemporâneos.
[1] Cf. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=AC7736719D327E7FC04CB73A79D68886.proposicoesWebExterno2?codteor=1825763&filename=PL+5674/2019
[2] ABRÃO, Eliane. Comentários à Lei de Direitos AUtorais e Conexos. Lumen Iuris: Rio de Janeiro, 2017, p. 184
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