Voltamos mais uma vez para tratar de temas jurídicos relevantes ao universo dos desenvolvedores de jogos. Essa semana, vamos conversar um pouco sobre um tópico sugerido por um amigo da computação: o que fazer quando os cocriadores de um jogo brigam durante o processo de desenvolvimento?
De partida, é importante esclarecer que não existe uma resposta correta para essa pergunta sem analisarmos o caso concreto. Isso porque o tipo de relação jurídica específica formada entre esses cocriadores influencia diretamente a resposta que o Direito poderá dar. De qualquer modo, podemos refletir sobre alguns aspectos dessas parcerias para ajudar os desenvolvedores a ter o mínimo de clareza e ciência sobre seus projetos:
1. Sociedades de Fato e relações jurídicas independentemente de formalização
No processo de desenvolvimento de um jogo, é mais comum que os participantes não resolvam “abrir uma empresa” no estágio inicial do projeto, seja em razão dos custos burocráticos e tributários, seja em virtude da própria viabilidade do jogo, ou ainda, da ausência de clareza sobre os papéis de cada colaborador. Porém, a falta de um contrato ou formalização não impede que se estabeleça uma relação jurídica entre os participantes. Assim, a maneira pela qual as partes se organizam influencia diretamente o regime jurídico que será aplicado.
O Código Civil reconhece, por exemplo, as “Sociedades Não Personificadas”, sociedades formada independentemente do registro nos órgãos públicos competentes. Logo, mesmo que os cocriadores e desenvolvedores não tenham se formalizado, é possível reconhecer a existência de uma sociedade de fato. Isso ocorre através de uma ação judicial, normalmente movida pelo sócio prejudicado, que busca reconhecer o vínculo existente entre as partes. O desenho da relação é construído, principalmente, por documentos escritos como mensagens e e-mails. O reconhecimento da sociedade de fato pode ter consequências importantes do ponto de vista de divisão de receitas, dos ativos de propriedade intelectual, incidência tributária, entre outros.
É importante mencionar que a relação jurídica pode ter uma natureza específica independentemente do nome dado pelas partes. Por exemplo, um colaborador pode ser chamado de parceiro ou prestador, mas ser reconhecido como empregado nos termos da legislação trabalhista. Um aporte pode ser chamado de investimento, mas, na verdade, ser considerado um mútuo ou doação.
A assinatura de contratos ajuda a dar clareza e transparência na relação, evitando infortúnios futuros quando da exploração do jogo. Obviamente, como dissemos antes, sem sempre as partes e o processo de desenvolvimento irão esperar uma formalização. Recomenda-se, pois, que se busque ao menos registrar por escrito os papéis, contribuições, responsabilidades, prazos e pagamentos (se houver) de cada um.
2. Direitos de propriedade intelectual
Esse é um dos pontos mais delicados quando lidamos com processos criativos colaborativos. A depender do objeto, temos casos de coautoria ou cotitularidade não divisível, na qual não é possível separar a criação/participação de cada um no resultado final. Isso faz com que, via de regra, os cotitulares só possam explorar aquele objeto com anuência dos demais. Imagine-se, por exemplo, o desenvolvimento conjunto de um personagem por um roteirista e um animador/desenhista. É possível separar as contribuições de cada um? Talvez sim, talvez não.
Além disso, há situações em que a contribuição do participante não chega a ter uma proteção específica, por exemplo, (i) mecânicas e regras do jogo; (ii) ideias, temas, assuntos e certos elementos criativo sem um grau mínimo de originalidade; (iii) revisões de texto. Nesses casos, trata-se de uma colaboração que não é tutelada pelas normas de propriedade intelectual – a princípio. Dizemos a princípio porque (frise-se) o direito não é uma ciência exata – sendo necessário sempre observar o caso concreto e seus possíveis meandros.
A solução sobre a distribuição dos ativos de propriedade intelectual dependerá, portanto, da natureza dos bens, da relação jurídica formada e da intenção entre as partes. Um contrato reconhecendo a distribuição e titularidade sobre o jogo ou sobre cada parte do jogo é um bom encaminhamento, sobretudo porque no Direito brasileiro não se aceitam alguns tipos de acordo verbal nessa área.
3. Sigilo do projeto
As partes devem saber que não está “subentendido” que o projeto é sigiloso e não deve ser divulgado ou comunicado a terceiros. O caráter de confidencialidade de um jogo, dos elementos que o compõe ou das informações sobre ele devem ser previamente estabelecidas por um acordo. Assim, em tese, se o tema não foi regulamentado, não há como penalizar a parte que deixa o projeto e faz algum tipo de comunicação ou divulgação do jogo. Por outro lado, devemos lembrar que pode ser aplicável a regra geral do Código Civil de dever de indenização no caso de qualquer ato ou omissão que possa ter gerado algum dano a alguém.
Por fim, vale dizer que o serviço de assessoria jurídica pode ser contratado inclusive para mediar e solucionar o conflito entre as partes – e não apenas para ajuizar uma ação, realizar uma cobrança ou tomar qualquer outra medida mais “agressiva”. O consenso e o acordo é sempre o melhor caminho no caso de briga entre cocriadores. Até a próxima!
Foto por Jeeshots. In: Unsplash.