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Arte de performance e direitos autorais

As questões de direitos autorais envolvendo obras de arte efêmeras, tais como performances e instalações, são das mais complexas no campo do direito e arte.

Em fevereiro deste ano, participei de um seminário na Pinacoteca do Ceará dedicado ao assunto (cuja íntegra você consegue assistir aqui). A partir dos debates que lá ocorreram, sistematizo aqui, de forma simplificada e de acordo com a legislação brasileira, alguns dos principais dilemas e dúvidas jurídicas que surgem com relação à arte de performance, bem como busco trazer, ao final, algumas recomendações e boas práticas para artistas, instituições culturais e profissionais da cultura que lidam com essa categoria da arte contemporânea.

Espero que este artigo contribua para o avanço das discussões e fico totalmente aberta a sugestões e contribuições (fale comigo via olivia@bsa.legal).

Dilemas

  • Proteção autoral

O art. 7º da Lei de Direitos Autorais (“LDA”) lista os tipos de obras que podem ser protegidas por direitos autorais. Embora não mencione explicitamente a palavra “performance”, a legislação inclui “obras dramáticas e dramático-musicais” e “obras coreográficas e pantomímicas” (isto é, com gestos e sem palavras – ou simplesmente mímica). A listagem é meramente exemplificativa, de modo que todas as obras que atendam aos seguintes requisitos estarão protegidas:

  1. Ser criada por ser humano;
  2. Ter um mínimo de originalidade; e
  3. Estar fixada em algum suporte, seja qual for (físico, digital etc.).

Assim, a materialização e o registro da obra são fundamentais para a proteção autoral. Sabemos que isso pode ir de encontro a algumas das características da arte de performance, como a espontaneidade e a efemeridade, porém, para que uma performance seja protegida, é necessário que esteja fixada de forma minimamente duradoura, como em um manual de instruções, um conjunto de materiais para “ativação”, um vídeo explicativo ou mesmo uma gravação de “ativação” anterior.

Esse tema foi tocado, ainda que indiretamente, em um caso judicial envolvendo obras performáticas do célebre Joseph Beuys. Nos idos de 2010, o Museu Schloss Moyländer, na cidade alemã de Bedburg-Hau, discutia nos tribunais se a existência de 19 fotografias “still” eram suficientes para garantir a fixação necessária para que uma performance de meia hora do artista – exibida na televisão local em 1964, mas não gravada em vídeo – fosse considerada protegida por direitos autorais.

Há também debates sobre o requisito da originalidade no campo da performance, especialmente quando a obra se configura em gestos, movimentos corporais ou atitudes cotidianas. Como exemplo, alguns questionam se uma obra como “The Artist is Present” (“A Artista Está Presente”, em português) de Marina Abramović, apresentada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 2010, seria original o suficiente para impedir que outros façam o mesmo ou semelhante, isto é, sentar em uma cadeira frente a frente com o público visitante. Deixando de lado uma discussão mais profunda sobre originalidade e considerando a fama de tal performance, é recomendado, ao nosso ver, que artistas que façam algo parecido indiquem que sua obra foi inspirada naquela de Abramović.

  • Autoria

Não somente a performance, mas a arte contemporânea como um todo desafia a noção jurídica tradicional e individualista de autoria. Em uma performance, pode haver diferentes atores envolvidos: um ou mais artistas, intérpretes, pessoas envolvidas na confecção dos materiais etc. Logo, podemos estar diante de casos de coautoria (art. 5º, VIII, “a”, da LDA), de autoria coletiva (art. 5º, VIII, “h”) ou, ainda, de discussões sobre quem é “mero auxiliar” e, portanto, não pode ser considerado coautor (art. 15, § 1º).

Vale dizer também que a ausência de fixação das obras de performance, sobretudo no seu início em meados do século passado, pode vir a dificultar a determinação da autoria.

Um caso que ilustra o tópico envolve novamente Abramović. Seu ex-parceiro amoroso e profissional, o artista alemão Ulay, entrou na justiça na Holanda a fim de que fosse reconhecida sua autoria conjunta de certas obras criadas pela dupla entre 1976 a 1988. Além de pagar a Ulay cerca de 250 mil euros no que diz respeito à venda e exploração publicitária das obras, também foi decidido que Marina deveria creditá-lo como co-autor.

  • “Camadas” de direitos

Uma performance – em especial, seu registro em fotografia, vídeo e assemelhados – pode envolver uma multiplicidade de direitos, tais como:

  1. Direitos autorais do artista que concebeu a performance;
  2. Direitos conexos e direitos de personalidade daquele que “ativa” a performance, que pode ser o próprio artista ou outra pessoa; e
  3. Direitos autorais de quem faz o registro (fotográfico, audiovisual etc.) da ativação da performance.

Na prática, isso significa que um museu, galeria ou demais interessados em exibir os registros de tal obra precisarão negociar e formalizar autorizações com um conjunto mais amplo de pessoas em comparação com obras de arte “tradicionais”, como pinturas e esculturas.

  • Musealização: materialização, empréstimo e conservação

É cada vez mais comum a aquisição de obras de performance por instituições de arte. A coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo, por exemplo, conta com obras dessa natureza, de autoria de artistas como Laura Lima e Lourival Cuquinha, desde o início dos anos 2000.

Entretanto, os museus enfrentam certos desafios ao incorporar performances em suas coleções. Primeiramente, há a dificuldade de definir o que materializa a performance, já que a arte performática tem um caráter majoritariamente intangível, sem a definição clara de um objeto palpável. Os profissionais de acervo frequentemente se deparam com dúvidas sobre o que configura a obra para fins de propriedade física e “tombamento” no acervo: os materiais que a compõem, os registros de sua ativação, um manual de instruções, um projeto?

Há autores se perguntando o que exatamente os museus estão adquirindo quando uma obra de performance adentra seus acervos: a obra performática propriamente dita ou os registros dela (que se convencionou chamar de “memorabilia”)? Para Maria Boicova-Wynants, deve-se evitar dizer que uma performance pode ser comprada ou vendida, “pois, na verdade, o que o comprador está adquirindo é sempre algo diferente. Seja o direito de ser creditado, seja o direito de executar a performance ou de exibir gravações dela. A performance em si é efêmera demais para ser possuída no nosso entendimento clássico de propriedade. Basicamente, a relação estabelecida assemelha-se mais ao patrocínio, que possui uma longa história no campo das artes” (tradução nossa).

O assunto se torna ainda mais complexo quando artistas, como Tino Sehgal, exploram a possibilidade de fazer arte sem produzir um objeto material ou “vestígios”. Na obra “This is Propaganda” (“Isso é Propaganda”, em português), adquirido pelo Tate em Londres, à medida que o visitante adentra a sala expositiva, o performer, vestido como um segurança, deve se afastar e cantar em voz alta: “isso é propaganda, você sabe, você sabe”. Para adquirir e exibir essa obra, o Tate precisou seguir regras estritas, como não documentar a obra em nenhum suporte, sejam contratos, legendas de parede, fotografias ou filmes.

Em segundo lugar, o empréstimo de obras performáticas requer uma atenção e participação mais ativa da instituição emprestadora. Esta deve não só repassar os eventuais documentos que compõem ou acompanham a obra, como também dar instruções claras quanto à sua execução, com o objetivo primordial de garantir que a obra seja exibida ao público de forma fidedigna.

Por fim, existem preocupações quanto à conservação de obras de performance. Seus suportes podem se desgastar, ficar obsoletos ou não estar mais disponíveis no mercado após certo tempo. Então, os profissionais de acervo se perguntam se seria possível, jurídica e eticamente, fazer uma cópia de preservação, seja da obra inteira ou de alguns de seus elementos.

De um lado, o ideal e mais seguro juridicamente seria obter, junto ao artista ou seus herdeiros, uma licença de direitos autorais que autorize a criação dessa cópia. Por outro lado, uma interpretação sistemática da legislação de direitos autorais e dos princípios constitucionais de acesso à cultura e arte poderiam, ao nosso ver, permitir a criação da cópia, mesmo sem autorização, a fim de garantir a continuidade da obra e o patrimônio cultural que veicula.

Contudo, isso traz à tona uma outra problemática: a instituição, como detentora da obra em seu acervo, tem interesse em exibir e preservar a obra. Mas e se o artista preferir que a obra não seja mais ativada ou que deixe simplesmente de existir quando o suporte original se desgastar? A maioria dos primeiros artistas de performance, por exemplo, não tinha interesse ou mesmo restringia a reexibição de obras advindas do início de suas carreiras, visando sua intangibilidade.

Para um aprofundamento das questões apresentadas neste tópico sobre musealização, recomendamos a leitura de “Reflexões sobre a Musealização da Arte de Performance”, dissertação de mestrado defendida por Camila Paes Lopes em 2019.

Recomendações e boas práticas

Como é de se esperar, os dilemas listados acima não tem respostas prontas ou fáceis. No nosso entendimento, a maior parte das questões jurídicas envolvendo performances pode ser bem encaminhada ou mesmo resolvida a partir do diálogo e colaboração entre as partes interessadas (artistas, herdeiros, galerias, museus, curadores, profissionais de acervo, advogados etc.) e, sobretudo, da formalização de documentos. Entre as recomendações mapeadas ao longo de anos de prática profissional na área das artes visuais, estão:

  • Considerando que mudanças na legislação avançam a passos lentos, as instituições devem empenhar esforços no estabelecimento de políticas institucionais, que sistematizem, por exemplo, os limites, cuidados e procedimentos para aquisição de performances.
  • Ao adquirir uma obra de performance, a instituição deve ter uma preocupação especial com sua documentação. O recomendado é preparar um memorial descritivo, no qual se determine o grau de detalhe e autonomia que a instituição terá: de um lado, condições essenciais (das quais o artista faz questão), e, de outro, condições complementares (indicando situações nas quais a entidade terá mais flexibilidade para adaptações). Sempre que possível, o memorial deve ser assinado pelas partes e acompanhado de íntegra de entrevista e/ou questionário feito junto ao artista, bem como complementado com e-mails, fotos, vídeos etc.
  • Na condução de entrevista ou questionário com artista, é importante perguntar sobre:
  1. Trajetória artística;
  2. Conceito e processo de criação da obra, incluindo materiais e técnicas;
  3. Equipe de assistência;
  4. Especificações de exibição (iluminação, ambiente, equipamentos etc.);
  5. Perfil de quem vai executá-la;
  6. Tempo de duração;
  7. Como deve ser a legenda/aviso no espaço expositivo;
  8. No que consiste o “residual” da performance, isto é, o que fica no espaço expositivo quando não está sendo ativada?
  9. Orientações e limites para documentação, registros e reexibição; e
  10. Orientações e limites para conservação, deterioração e restauro.
  • Desde o momento da aquisição, recomenda-se que a instituição ou pessoa proprietária de uma obra de performance busque obter as autorizações de direitos necessárias para a sua ativação, registro, exibição e afins: (1) licença de direitos autorais com artista; (2) autorização de uso de imagem e licença de direitos conexos com artista ou terceiros que apareçam nos registros de sua ativação; e (3) licença ou cessão de direitos autorais junto ao profissional fotográfico que fizer tais registros. Os contratos devem ser adaptados às características de cada obra, bem como às práticas individuais dos artistas.
  • Em situações de necessidade de restauro, estaremos diante de uma ponderação entre os direitos morais de autor pertencentes ao artista (referentes à integridade da obra, conforme o art. 24, IV, da LDA) e os direitos da instituição e da coletividade de proteger e acessar o patrimônio cultural e artístico. Entendemos serem justas e possíveis aquelas adaptações e restauros feitas por profissionais especializados, seguindo à risca as normas técnicas e com razoabilidade. Seria o caso, por exemplo, de uma obra cujo material especificado nas instruções não é mais fabricado, mas há um substituto semelhante disponível no mercado.
  • Mais um cuidado relevante diz respeito à classificação indicativa no momento de ativação da performance ou de exposição de seus registros em mostras. Muitas são as performances com conteúdos sensíveis e, assim, é crucial que a faixa etária recomendada para a obra seja definida e explicitada ao público de acordo com as regras do Ministério da Justiça. Se quiser saber mais sobre classificação indicativa no contexto das artes visuais, consulte aqui.

Foto de Hulki Okan Tabak na Unsplash.

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