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Filmagem de Indígenas em Obras Audiovisuais: Cuidados com Direitos Autorais e Direitos Personalíssimos

Um assunto que pode gerar muitas dúvidas entre produtoras audiovisuais refere-se a projetos que possuam algum tema (principal ou secundário) que envolva povos indígenas, tanto no que diz respeito à imagem e voz, quanto aos direitos autorais de indígena.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) regula o uso de direitos autorais de povos indígenas em obras audiovisuais nos artigos 2 a 4 da Portaria nº177/PRES/2006, e o direito de imagem nos artigos 5 a 10.

Essa norma acaba trazendo algumas especificidades se comparadas ao tratamento geral dos direitos de imagem e direitos autorais previstos no Código Civil e na Lei de Direitos Autorais, valendo destacar aqui os seguintes pontos:

Direito Autoral:

  • As criações indígenas poderão ser utilizadas, mediante autorização dos titulares do direito autoral, desde que haja: i- o respeito à vontade dos titulares do direito quanto à autorização, veto, ou limites para a utilização de suas obras; ii- as justas contrapartidas pelo uso de obra indígena, especialmente aquelas desenvolvidas com finalidades comerciais; iii- a celebração de contrato entre o titular ou representante dos titulares do direito autoral coletivo e os demais interessados (art. 3);
  • A FUNAI participará das negociações de contratos e autorizações de uso e cessão de direito autoral indígena, no âmbito de sua competência e atendendo aos interesses indígenas, sempre que solicitada (art. 4);
  • Recomenda-se o registro do direito autoral indígena no órgão competente antes da autorização e cessão do uso desses direitos, mas a falta de registro não impede a exploração, comercialização, utilização ou autorização dos direitos a qualquer tempo (art. 4, §1º).

Direito de Imagem:

  • O direito sobre as imagens baseadas em manifestações culturais e sociais coletivas dos índios brasileiros pertence à coletividade, grupo ou etnia indígena representada (art. 5, §2º);
  • Quando o uso da imagem de pessoas afetar a moral, os costumes, a ordem social ou a ordem econômica da coletividade, extrapolando a esfera individual, será considerado um direito de imagem coletivo (art. 5, §3º);
  • A captação, uso e reprodução de imagens indígenas dependem de autorização expressa dos titulares do direito de imagem indígena (art. 5, §4º);
  • Qualquer contrato que regule a relação entre indígena ou povos indígenas titulares do direito de imagem e demais interessados deve conter: i- expressa anuência dos titulares individuais e coletivos do direito sobre a imagem retratada; ii- vontade dos titulares do direito quanto aos limites e às condições de autorização ou cessão do direito imagem; iii- garantia do princípio da repartição justa e equitativa dos benefícios econômicos advindos da exploração da imagem (art. 6, § Único);
  • A FUNAI participará das negociações de contratos e autorizações de captação, uso e reprodução de imagens indígenas, no âmbito de sua competência e atendendo aos interesses indígenas (art. 9).

Os titulares desses direitos são o(a) indígena ou povos indígenas que produziram o conteúdo ou material protegido por direito autoral, ou cuja imagem é captada e inserida nas obras audiovisuais, podendo ser tanto um direito individual (por exemplo, uma pintura elaborada por uma só pessoa ou a imagem daquela pessoa em uma entrevista individual), quanto coletivo (por exemplo, músicas tradicionais cantada pelo povo indígena ou a imagem deste como um todo).

No caso de direitos individuais, os titulares serão as próprias pessoas que detém esses direitos; já com relação ao direito coletivo, a Portaria indica que a representação deverá ser feita (i) de acordo com seus costumes e tradições (art. 15); (ii) na ausência da representação de acordo com os costumes e tradições, a representação poderá ser por pessoas jurídicas ou por associações de fato (art. 15, §1º), sem, no entanto, estar claro que tipo de pessoa jurídica ou associação poderia realizar essa apresentação; ou (iii) na falta de identificação clara da representação tradicional, deverão ser ouvidas outras formas de representação que porventura existirem (art. 15, §2º).

A Portaria não exige a necessidade de aprovação do contrato de cessão de direitos ou autorização de uso de imagem pela FUNAI, porém, essa necessidade fica subentendida no caso de ingresso em terras indígenas em razão de um dos documentos exigidos ser justamente a minuta ou contrato de cessão de direitos ou de autorização de uso de imagens, sons, grafismos e outras obras e criações indígenas, firmado em língua portuguesa ou indígena, entre indígenas (titulares do direito) e os interessados (por exemplo, produtoras audiovisuais).

Para captação de direitos autorais ou imagem de povos indígenas ou indígena em locais diversos, a intervenção da FUNAI ocorre apenas se os titulares do direito não tiverem consciência e conhecimentos do que estão autorizando e das consequências dessa autorização, e desde que não haja qualquer prejuízo a eles[1].

A Portaria também prevê certos itens que uma cessão de direitos ou autorização de uso de imagens indígenas deve conter, sem prejuízo das regras gerais do Código Civil e da Lei de Direito Autoral, a saber[2]:

  1. compromisso do interessado em respeitar os costumes e tradições indígenas;
  2. objeto dos contratos, estabelecendo o número de cópias, reproduções, tiragens e exibições em meios de comunicações das criações e imagens indígenas;
  3. previsão de sanção para casos de descumprimento das obrigações por parte dos interessados;
  4. previsão de depósito em garantia das obrigações em favor das comunidades indígenas;
  5. mecanismos de controle dos desdobramentos das atividades que afetem aos indígenas e sua coletividade;
  6. garantia de critérios de valores no mínimo compatíveis com valores de mercado, quando tratar-se de atividade remunerada;
  7. cláusula de remuneração ou indenização, de caráter pecuniário ou não, a ser revertida diretamente à comunidade atingida; e
  8. tradução para a língua indígena quando necessária para a compreensão do documento.

É sempre importante lembrar que a Portaria busca regular direitos autorais e direitos de imagem que sejam relacionados ao patrimônio e à cultura indígena. Isso levanta uma questão interessante: as disposições da Portaria também se aplicariam às autorizações e cessões assinadas individualmente por indígena fora do contexto da tribo e das práticas culturais coletivas?

A Portaria não define exatamente o que seriam considerados direitos autorais e direitos de imagens indígenas, nem em seu sentido “coletivo”, nem no sentido “individual”.

Por exemplo, imagine-se um documentário sobre um indígena conhecendo um local urbano, ou mesmo sobre um artista indígena que produz música popular com características de seu povo. Nestes casos, precisamos observar a Portaria, ou deve levar em consideração apenas as disposições do Código Civil e Lei de Direitos Autorais?

Podemos considerar a como uma matriz de ponderação geral que direitos autorais e direitos de imagem em que há uma representação do povo ou que busque incorporar ao seu patrimônio ou sua cultura devem sempre observar a Portaria. Ao mesmo tempo, nos casos de autorizações ou cessões individuais, prevalece a livre vontade das partes contratantes, observados os limites do Código Civil e Lei de Direitos Autorais.

De todo modo, em razão dessa falta de clareza, cada situação deve ser analisada sempre dentro do caso concreto, preferencialmente, a partir do olhar de uma assessoria jurídica especializada.


[1] Portaria nº177/PRES/2006. Art. 14 – São considerados válidos os contratos firmados entre as comunidades envolvidas, ou seus representantes e os terceiros interessados, independentemente de prévia autorização da Fundação Nacional do Índio, quando tiverem consciência e conhecimentos plenos dos atos praticados e da extensão de seus efeitos, e desde que não lhes sejam prejudiciais

[2] Portaria nº177/PRES/2006. Art. 14, parágrafo único

Foto de Denise Jans na Unsplash

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