Este é o 3º artigo da série Direito e Museus. Para ler os demais artigos, acesse: http://institutodea.com/artigo/author/mei-jou-e-olivia-bonan/.
No artigo anterior, falamos sobre as características e atribuições da profissão da museologia, bem como sobre os vários normativos que a regem. Os profissionais museólogos estão entre aqueles que compõem os quadros das instituições museológicas, que contam com equipe multidisciplinar para o desempenho de atividades de conservação, preservação, difusão e educação sobre a arte, a cultura e o patrimônio do país.
Tendo em vista a importância de suas contribuições à sociedade, os museus receberam legislação específica em 2009 com a Lei nº 11.904 – o Estatuto dos Museus –, regulamentada pelo Decreto nº 8.124 em 2013. Estes aplicam-se apenas aos museus, excluindo-se, portanto, de seu alcance as bibliotecas, centros de documentação[1], coleções visitáveis[2] e arquivos (art. 6º da Lei).
O Estatuto nasce como um dos instrumentos para que o Estado e a sociedade cumpram com obrigações relativas ao reconhecimento e difusão da cultura e à proteção ao patrimônio cultural brasileiro, colocadas na Constituição Federal, em especial nos arts. 215 e 216, que dispõem sobre o conceito, propósito e estrutura dos museus, para que estes possam implementar projetos de valorização, preservação e fruição de bens culturais e impulsionar a diversidade étnica, social e cultural do Brasil.
Mas, afinal, o que é um museu?
Entende-se por museu toda “instituição sem fins lucrativos, de natureza cultural, que conserva, investiga, comunica, interpreta e expõe, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de outra natureza cultural, abertos ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento” (art. 1º da Lei e art. 2º, inciso IX, do Decreto). São espaços dinâmicos e em constante transformação, dado que os conceitos e as atividades que são desenvolvidas pelas instituições museológicas estão em constante atualização.[3]
Na consecução de seus objetivos, os museus devem se guiar por princípios como a valorização da dignidade humana, a promoção da cidadania, o cumprimento da função social, a valorização e preservação do patrimônio cultural e ambiental, a universalidade do acesso, o respeito e a valorização à diversidade cultural, e o intercâmbio institucional (art. 2º da Lei).
Informações como história, endereço, tipo de acervo e acessibilidade de 3.922 dessas instituições brasileiras podem ser consultadas na plataforma de mapeamento colaborativo Museusbr (criada pela Portaria IBRAM nº 06/2017), entre elas, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, a Oficina Cerâmica Francisco Brennand, em Recife, e o Museu da Amazônia, localizado em Manaus.
Como os museus são criados e organizados?
As instituições museológicas podem ser fundadas por qualquer entidade, independentemente de seu regime jurídico (art. 7º da Lei), por meio do registro da eleição de seus dirigentes e estatuto social em cartório.[4] Há museus gerenciados por organizações privadas, como exemplo, o Museu Belas Artes de São Paulo, vinculado ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, e há museus públicos, como a famosa Pinacoteca de São Paulo, pertencente ao governo estadual desde 1905 e atualmente gerida pela Associação Pinacoteca Arte e Cultura.
Todo museu deve aprovar um regimento interno (art. 18 da Lei e art. 22 do Decreto), voltado a descrever sua estrutura organizacional e funcionamento, bem como manter instalações adequadas à realização de suas atividades e ao bem-estar de seus usuários e funcionários (art. 19 da Lei). Competirá à direção da instituição assegurar o seu bom funcionamento e o cumprimento do plano museológico, assim como conceber e coordenar a execução do plano anual de atividades (art. 20 da Lei).
Além disso, os museus podem, conforme suas características, ter filiais, seccionais e núcleos ou anexos[5] (art. 3º da Lei), bem como estimular a criação de associações de amigos, para que estas prestem apoio às suas atividades (art. 9º da Lei e art. 30, § 1º, do Decreto). O Museu Lasar Segall, por exemplo, conta com a Associação Cultural de Amigos do Museu Lasar Segall, que visa a viabilizar projetos culturais e educativos através das contribuições de seus sócios.
Porém, para que possa ser formada, uma associação de amigos deve respeitar determinados requisitos: ser constituída como sociedade civil sem fins lucrativos; ter como finalidade exclusivamente o apoio, manutenção e incentivo às atividades de determinado museu; não impor restrições para entrada de novos membros; e ainda, não remunerar sua diretoria (art. 50 da Lei). No decorrer de suas atividades, deverá publicar periodicamente seus balanços (art. 52 da Lei), além de se submeter à aprovação prévia e expressa da instituição a que se vinculam (art. 53 da Lei e art. 30, § 2º, do Decreto). Quanto à gestão de recursos, 10% dos valores por ela arrecadados podem ser utilizados para sua própria manutenção, enquanto o restante deve ser revertido para o museu (art. 54 da Lei).[6]
E os museus públicos?
Os museus públicos são aqueles vinculados ao poder público e criados por ato normativo específico, sendo que o plano anual de tais instituições deve ser elaborado previamente pelo ente público responsável, com o objetivo de garantir o funcionamento e o cumprimento das finalidades do museu (arts. 13 a 15 da Lei e art. 33 do Decreto). Também, aos funcionários técnicos de tais instituições é vedada a participação direta ou indireta em atividades de comercialização de bens culturais (art. 16 da Lei).
Como exemplos de museus públicos podemos citar o Museu Nacional, vinculado à União, o Museu Paulista da USP (também conhecido como Museu do Ipiranga), subordinado ao governo do estado de São Paulo, e o Museu da Cidade de São Paulo, pertencente à Prefeitura de São Paulo. Tal como requer a legislação, o MCSP foi criado em 1993 por norma específica (Decreto Municipal nº 33.400, posteriormente revisto em 2004 pelo Decreto Municipal nº 44.470) que especificava os objetivos da instituição, bem como sua sede, polos de irradiação de suas funções, entre outras disposições.
O Estatuto dos Museus permite que os museus públicos estabeleçam convênios para sua gestão (art. 15). Exemplo disso é o Museu de Arte Sacra de São Paulo, cuja gestão é realizada por entidade qualificada como Organização Social, a Associação Museu de Arte Sacra de São Paulo.
Quais atividades são desempenhadas pelos museus?
Acervo: De acordo com a legislação, a atuação de uma equipe de Acervo pode ser dividida em duas esferas. A primeira diz respeito à necessidade de o museu cuidar do patrimônio cultural, devendo conservá-lo e garantir sua segurança (arts. 21, 23 e 24 da Lei e Art. 25 do Decreto).
As instituições devem atentar para o fato de que às ações de preservação, conservação ou restauração que impliquem dano irreparável ou destruição de bens culturais é aplicado o regime de responsabilidade solidária (art. 22 da Lei). Ou seja, a reparação por eventuais danos pode ser exigível não só daqueles que o causaram, mas também do possuidor direto ou indireto do bem, assim como sobre o proprietário deste – independentemente de terem dado causa ao dano –, além de poder, também, ser imputada ao poder público, no caso de haver omissão na vigilância por parte deste.[7]
Ainda, o não cumprimento de medidas de preservação ou de correção de danos causados por degradação, inutilização e destruição de bens culturais pode levar à aplicação de determinadas penalidades aos transgressores (constantes no art. 66 da Lei).
Para diminuir riscos e garantir a integridade de sua coleção, as instituições museológicas devem adotar medidas robustas de segurança em seus espaços[8], podendo, para isso, cooperar com entidades de segurança pública na definição de programas de seguranças (art. 25 da Lei) e no combate aos “crimes contra a propriedade e tráfico de bens culturais” (art. 26 da Lei) – relativos à subtração desses bens de seu local de origem, através de furto ou roubo.
Já a segunda esfera de atuação da área de Acervo relaciona-se ao dever de se conduzir registro, inventário e documentação acerca dos bens culturais pertencentes à instituição (art. 39 da Lei). Se quiser saber mais detalhes sobre esse assunto, confira o 1º artigo dessa série sobre Direito e Museus.
Em linhas gerais, é obrigação legal dos museus manter documentação sistematicamente atualizada sobre os bens que integram seus acervos, na forma de registros e inventários (art. 39 da Lei). Tais inventários são considerados patrimônio arquivístico de interesse nacional, devendo ser conservados nas instalações (físicas ou digitais) dos museus, evitando-se destruição, perda ou deterioração (arts. 40 e 41 da Lei e art. 26 do Decreto). Ainda, os museus também são responsáveis por formular uma política de aquisições e descartes desses bens (art. 38 da Lei e art. 24 do Decreto).[9]
Educativo, Biblioteca e Pesquisa: O estudo e a pesquisa devem fundamentar e nortear todas as ações desenvolvidas nas instituições museológicas (art. 28 da Lei), sendo que os museus devem promover ações educativas – baseadas no respeito à diversidade cultural e na participação comunitária –, voltadas à ampliação do acesso da população às manifestações culturais e ao patrimônio cultural brasileiro (art. 29 da Lei). Também, levando em consideração a importância do estudo e da pesquisa, os museus devem disponibilizar oportunidades de prática profissional em cooperação com estabelecimentos de ensino que ministrem cursos de museologia e similares (art. 30 da Lei).
Exposições, Publicações e Comunicação: Os museus devem pautar-se pelo acesso dos diferentes públicos (art. 35 da Lei), produzindo exposições nas quais o público possa visitar seus espaços (hoje em dia não só físicos como também virtuais) e entrar em contato com bens culturais – da sua própria coleção ou advindos de outras instituições e lugares – que estimulem a reflexão e o reconhecimento de seu valor simbólico (art. 32 da Lei).
Nesse sentido, visando a difusão cultural e a ampliação do acesso aos museus, estes podem produzir publicações e peças de comunicação sobre seu acervo e atividades, a serem divulgadas em diferentes mídias (arts. 31 e 33 da Lei), como realizado pelo Museu do Índio – cujas publicações buscam divulgar trabalhos históricos e contemporâneos sobre povos indígenas, realizados com base nos acervos da instituição e outras fontes bibliográficas – e nos Anais do Museu Histórico Nacional, entre outros exemplos.
Além disso, é recomendado que os museus elaborem políticas de gratuidade de ingressos (art. 34 da Lei), sendo muito comum que não cobrem entrada em um dos dias da semana, além de geralmente ser gratuita a entrada de crianças menores de 10 anos e pessoas maiores de 60 anos, havendo a possibilidade de meia entrada para estudantes, de acordo com a legislação aplicável.
Já no tocante ao acesso à imagem e à reprodução dos bens culturais musealizados, os museus devem facilitar tal acesso, sendo que a disponibilização deverá estar fundamentada nos princípios de conservação dos bens culturais e do interesse público, bem como da garantia dos direitos de propriedade intelectual e de personalidade (art. 42 da Lei). Sendo assim, caso alguém queira utilizar a imagem de um quadro pertencente a determinado museu, deverá entrar em contato com tal instituição e, na maior parte dos casos, também com os titulares de direitos (art. 27 do Decreto).[10] O museu, caso assim deseje, poderá cobrar pelo fornecimento da fotografia ao solicitante (art. 29 da Lei).
O que é e qual a importância do Plano Museológico?
O Plano Museológico é um instrumento de planejamento estratégico do museu, necessário para definir sua vocação, bem como priorizar os objetivos e trabalhos de cada área interna, mostrando como aquela instituição pretende atuar junto à sociedade (art. 45 da Lei). Entre os vários Planos Museológicos existentes, podemos citar aqueles disponibilizados pelo Museu da Imigração do Estado de São Paulo, pelo Museu Afro Brasil e pelo Museu do Futebol.
Ambos Estatuto e Decreto elencam diversos itens que podem estar presentes no Plano – tais como a identificação de espaços e públicos do museu e o detalhamento de seus setores internos[11] – e indicam a necessidade de elaborá-lo preferencialmente de forma participativa, envolvendo os colaboradores do museu, público e especialistas, além de avaliá-lo e revisá-lo com periodicidade (art. 46 da Lei e arts. 23 do Decreto). Nesse sentido, visando a monitorar os Planos Museológicos dos museus, o IBRAM, através da Portaria nº 345/2019, instituiu grupo de trabalho responsável por elaborar um instrumento que permita tal acompanhamento.
No próximo artigo, ainda sobre a regulamentação do setor de museus, trataremos de outros aspectos constantes no Estatuto de Museus, seu Decreto e regulações correlatas, tais como o IBRAM, o Sistema de Museus e questões relativas aos bens culturais. Até lá!
[1] Por exemplo, o Centro de Documentação e Pesquisa da Funarte, sendo que centros de documentação, segundo o Decreto, são entendidos como uma instituição que reúne documentos e referências sobre uma área da atividade humana (art. 2º, IV).
[2] Uma coleção visitável – tal como a da Faculdade de Direito do Recife – é tida como um conjunto de bens culturais conservados por pessoa física ou jurídica e abertos à visitação (art. 2º, inciso IV e V, do Decreto).
[3] ASSIS, Renilton R. S. Matos de; LOPES, Thainá C. C. Figueiredo. Políticas patrimoniais para o campo dos museus no Brasil: Breve análise do Estatuto dos Museus. Cadernos NAUI, Vol. 3, n.4, jan.-jun. 2014, p. 51.
[4] O registro confere ao documento fé pública e publicidade, garantindo que seu conteúdo é verdadeiro e que tenham efeitos perante terceiros. Todos os atos referentes à fusão, criação, incorporação, cisão ou extinção de museus devem ser registrados em órgão público competente ou, em sua ausência, no Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM (art. 7º do Decreto).
[5] De acordo com a legislação, museus dependentes de outros quanto à sua direção e gestão, inclusive financeira, mas que possuem plano museológico autônomo, são considerados “filiais”; “seccionais” são uma parte diferenciada de um museu que, com a finalidade de executar seu plano museológico, ocupa um imóvel independente da sede principal; e constituem-se como “núcleo” ou “anexo” os espaços móveis ou imóveis que, por orientações museológicas específicas, fazem parte de um projeto de museu.
[6] Para mais informações sobre a criação de associação de amigos, veja: https://www.museus.gov.br/associacoes-de-amigos-dos-museus/.
[7] É nessa linha que o art. 25, § 1º, do Decreto dispõe que tanto “os responsáveis pelos museus” quanto “os agentes que, em razão de ações de preservação, conservação ou restauração, derem causa, mesmo que de forma culposa, a dano ou destruição de bens culturais musealizados, responderão civil e administrativamente pelos seus atos”.
[8] Para mais informações sobre segurança em museus, veja: https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2012/08/Seguranca-em-Museus.pdf.
[9] Podemos citar como exemplos de políticas de aquisição e descarte de bens culturais aquelas formuladas pelo Museu da Cidade de São Paulo e pelo Museu Histórico de Santa Catarina.
[10] De modo geral, o interessado deverá obter autorizações de direitos autorais, específicas para os usos desejados, dos titulares de direitos sobre a obra (basicamente o autor da obra ou seus herdeiros) e dos titulares de direitos sobre a imagem da obra (quem fotografou a obra ou seus herdeiros). Para maior aprofundamento, veja os artigos 28, 29, 31 e 33 da Lei de Direitos Autorais. Não será necessário solicitar autorização prévia dos titulares quando a obra estiver em domínio público (arts. 41 a 45 da LDA) ou quando o uso em questão se enquadrar em uma das hipóteses dos arts. 46 a 48. Em caso de dúvidas, consulte sempre um advogado especializado.
[11] De acordo com o Decreto, um museu deveria contar, ao menos, com o seguinte conteúdo mínimo: institucional (gestão técnica e administrativa e cooperação com diferentes agentes), acervos, exposições, educativo, pesquisa, arquitetônico-urbanístico, segurança, financiamento e fomento, comunicação e socioambiental.
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