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O Supremo e você – Parte 1

Como as decisões de onze juízes em Brasília influenciam sua vida.

 

“A reverência que a Grécia Antiga tinha pelos oráculos, e a Idade Média, pelo Papa, é destinada nos Estados Unidos de hoje à Suprema Corte– Bertrand Russell [1]

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) é uma instituição de muito destaque na vida pública brasileira. Supremas cortes no mundo todo são importantes – a Supreme Court dos Estados Unidos e o Bundesverfassungsgericht alemão, por exemplo, são elementos centrais do dia a dia político e jurídico de seus países –, mas o nosso STF parece gozar de um prestígio que discrepa do descrédito que a opinião pública reserva, por exemplo, ao Legislativo (Congresso Nacional) e ao Poder Executivo (presidente e ministros). Já foi dito que o Tribunal vem ganhando espaço na atual crise política, e até se tornando mais forte que as cúpulas dos demais Poderes. Nós lhe delegamos decisões fundamentais sobre nossa vida moral (casamento gay, aborto, drogas), econômicas (confisco da poupança, renegociação das dívidas dos Estados, pagamento de precatórios) e sociais (flexibilização das relações de trabalho, desaposentação, cotas raciais)

 

Um dos motivos de sua força pode ser sua imagem de moralidade, pelo menos em relação a outros órgãos importantes da República. O Supremo está em boa parte imune das críticas voltadas ao restante do Poder Judiciário  – em especial, os salários elevadíssimos dos magistrados –, já que os seus Ministros ganham muito menos que juízes e desembargadores da maioria dos tribunais do Brasil. Além disso, a atual presidente do STF, Ministra Cármen Lúcia, que recentemente declarou que gosta de processo, não de festa, projeta uma imagem íntegra e até estoica, o que certamente contribui para a popularidade do tribunal.

 

Mas se discute pouco, fora das universidades e dos fóruns, sobre como o Supremo funciona, o que ele faz e exatamente o que o torna tão importante, uma vez que ele não cria (como o Legislativo) nem executa (como o Executivo) as leis. Este artigo e os próximos que publicarei neste espaço têm por objetivo explicar para quem não é do direito por que isso é assim, e dar a dimensão de como o Supremo pode influenciar as vidas de cidadãos, empresas e profissionais.

 

Onde está o Supremo?

O Supremo Tribunal Federal está em Brasília, em um prédio projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, em frente à Praça dos Três Poderes.

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O supremo está aqui

Independentemente de onde ele estiver, a questão relevante é saber qual o lugar que o Supremo ocupa no desenho institucional do Estado Brasileiro.

 

A Constituição dá uma resposta clara, embora incompleta, a essa pergunta, ao elencá-lo como órgão do Poder Judiciário[2]. Embora possa parecer trivial, essa informação é importante, porque significa que o Supremo tem um lugar na tripartição de poderes brasileira, não sendo, por exemplo, um órgão autônomo e independente, como o Ministério Público, que não pertence nem ao Executivo, nem ao Legislativo, nem ao Judiciário.

 

A Constituição não diz, porém, que o Supremo encabeça o Poder Judiciário, nem que ele tem hierarquia superior aos outros Tribunais, ao contrário do que faz com o Presidente da República, que, além de ser o órgão mais importante do Poder Executivo, é seu chefe[3].

 

Quão supremo é o Supremo?

E isso é porque ele não tem essa supremacia hierárquica. Nosso Poder Judiciário é constituído por Tribunais que, pelo menos em princípio, gozam de ampla autonomia, com administração e orçamento próprios. Isso significa que o STF não manda em outros Tribunais e nem mesmo em juízes individuais, que também dispõem de autonomia para tomar suas decisões. Não são raras as situações em que juízes decidem conscientemente contra o Supremo. Isso não só é lícito em certas situações com por vezes necessário para que posições consolidadas do Judiciário mudem em um movimento que parte de baixo para cima. E há até mesmo situações em que, embora a decisão do STF seja obrigatória para outros juízes e Tribunais, uma certa rebeldia de sua parte acaba mudando a posição do STF.

 

Foi o que aconteceu em uma discussão que durou quinze anos sobre os critérios para a concessão do chamado benefício de prestação continuada (conhecido pelo nome da lei que o prevê, a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), um benefício assistencial pago pelo INSS a pessoas idosas ou com deficiência que não possam, por si com com a ajuda de suas famílias, prover seu sustento. A lei prevê como critério para aferir a pobreza, viabilizando o pagamento do benefício, a renda familiar per capita igual ou inferior um quarto do salário mínimo[4]. Em 1998, o Supremo decidiu que esse critério é constitucional[5], ou seja, que o restante do Judiciário deve obrigar o INSS a conceder o benefício apenas caso seja comprovada a renda familiar per capita não superior a um quarto de salário mínimo.

 

Apesar da decisão, muitos juízes e tribunais no Brasil continuaram obrigando o INSS a pagar o benefício em casos de renda familiar maior. O INSS se defendia pedindo para o Supremo reformar a decisão – algo que, nesse caso, o Supremo tem poder para fazer –, e ganhava. Isso até que, em 2013, o INSS pediu a reversão de uma decisão que havia contrariado a posição tradicional do Supremo e perdeu[6]. O STF entendeu que o Brasil havia mudado naqueles quinze anos, e que havia pessoas que mereciam o benefício mesmo não sendo tão pobres quanto a lei exigia que elas fossem, reformando seu entendimento tradicional.

 

O que não chega ao Supremo

Além da permissão para que juízes e Tribunais discordem de decisões do STF, há também situações em que a decisão simplesmente não cabe a ele, mas a esses órgãos jurisdicionais (termo que significa “juízes e Tribunais”) espalhados pelo país. A maioria de nós tem a impressão de que os processos no Brasil têm um caminho linear que começa com um juiz acaba, ou pode acabar, sempre no STF. Algo mais ou menos assim:

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Diagrama que não reflete o funcionamento do nosso sistema judicial

 

Temos uma impressão intuitiva de que, quando vamos processar alguém, pedimos algo a um juiz, que toma uma decisão que pode ser revista por um tribunal, depois faz um caminho estranho que custa muito dinheiro gasto em departamentos jurídicos, fica anos em um limbo perdido nos arquivos de algum fórum, passa por siglas como TSE, STJ, STM, TST e finalmente chega ao Supremo, que toma a decisão final.

 

Quando, na verdade, existem muitos processos que não têm como chegar no STF, nem começam com juízes:

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Diagrama que também não reflete o funcionamento do nosso sistema judicial, mas chega um pouco mais perto

 

Em primeiro lugar, existem processos que começam em Tribunais ou no STF sem nunca passar por juízes. Os mais famosos são processos contra políticos acusados de cometer crimes, que têm o chamado “foro privilegiado”. É o caso de deputados, senadores e ministros, processados por crimes comuns no STF, governadores, no STJ (Superior Tribunal de Justiça), e certas autoridades estaduais, nos respectivos Tribunais de Justiça, por exemplo. Mas também há ações de outras naturezas propostas diretamente em tribunais, como mandados de segurança (ações rápidas voltadas a combater atos ilegais praticados por agentes públicos) contra certas autoridades.

 

Além disso, existem matérias a respeito das quais outros tribunais, que não o Supremo, têm a última palavra. Isso porque o STF só tem a última palavra, em regra, sobre a interpretação da Constituição, mas outros tribunais têm a competência para interpretar em última instância leis estaduais e federais. As leis estaduais são interpretadas pelos Tribunais de Justiça de cada estado; as federais, pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelos tribunais superiores da Justiça Eleitoral, do Trabalho ou Militar. Quando um caso é julgado por um desses tribunais, o Supremo só pode revê-lo quando alguma das partes no processo for capaz de demonstrar que a solução alcançada viola a Constituição, o que nem sempre é possível. E, mesmo nesse caso, o STF não tem o poder de dizer como deve ser interpretada certa lei estadual ou federal, exceto para conformá-la à Constituição.

 

Há, por fim, formas de acessar o STF sem passar por outros órgãos jurisdicionais, especialmente quando algum juiz toma uma decisão que contraria uma decisão do STF que deve ser obrigatoriamente seguida. É o que acontecia no caso narrado acima do benefício assistencial da LOAS.

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Estátua de Themis na entrada do STF, esculpida por Alfredo Ceschiatti

Conclusão

Procurei mostrar o que é o Supremo e o um pouco do que ele não é – e ele não é o chefe do Poder Judiciário, nem uma instância absoluta de revisão de qualquer processo judicial. Apesar disso, o tribunal tem a última palavra para interpretar a Constituição, e a maior parte dos processos mais relevantes do Brasil passa de algum modo por ele.

 

No próximo artigo sobre o Tribunal, pretendo mostrar o que ele faz. O STF tem uma função mista, um pouco diferente de outras supremas cortes pelo mundo, porque ele congrega funções de corte recursal, corte originária e corte constitucional. Pretendo ainda fazer a distinção entre as decisões que são obrigatórias e as que não são, e em que sentido é possível afirmar que uma decisão do STF é obrigatória.

 

 

[1]  “In the United States at the present day, the reverence which the Greeks gave to the oracles and the Middle Ages to the Pope is given to the Supreme Court.”. Bertrand RUSSEL. Power. 1937. Reprinted Routledge Classics. 2004, p. 53. Tradução livre.

[2] Art. 92, I.

[3] Nos termos do art. 76, o Presidente “exerce” o Poder Executivo.

[4] Art. 20, §3º, da Lei nº 8.742/93.

[5] ADI nº 1.232, Rel. Min. Ilmar Galvão.

[6] Recl. nº 4.374, Rel. Min. Gilmar Mendes.

 

Photo in: stf.jus.br

 

 

 

 

 

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