O gabinete de um Juiz não deveria ser o lugar mais solitário do mundo…
Difícil buscar, no senso comum, uma imagem diferente daquela do Magistrado sentado em uma mesa em um ambiente sisudo, recebendo tantos quantos forem para, em um termo singelo, “dizer-lhes o direito”. Gabinete em que, saindo o cidadão, tudo se apaga, voltando Sua Excelência à inércia judicial. Uma imagem que transforma o Juiz em uma máquina que se ativa quando há a tal de crise de certeza, o conflito entre as pessoas ou a necessidade de se chamar a autoridade da “Boca da Lei”.
Esse senso comum tem uma evidente origem histórica e técnica. A tal da inércia judicial, inclusive, é princípio do direito como processo que pacifica as relações entre as pessoas. A inércia judicial tem como objetivo evitar que o poder representado pelo Juiz saia por aí dando “pitacos” onde não foi chamado – e, veja, pitacos com força de Lei.[1]
Contudo, para além dessa visão digna de Franz Kafka, onde o juiz só adquire vida quando o cidadão comum entra em seu gabinete, coloco a seguinte ponto: Qual é, ou deveria ser, a relação do juiz com os fatos que lhe cercam e com a realidade social e tecnológica contemporânea cada vez mais multifacetada? Não, boa parte dessa questão não é nova e já foi muito debatida no Brasil há, pelo menos, uns 30 anos. Período onde muito se discutiu sobre o reconhecimento de que Juiz tem, sim, atividade social, além de função política em sua atividade e posicionamento.
Um questionamento óbvio que parte da noção de que Sua Excelência julga questões vindas do mundo e é para o mundo que devolve sua atividade. Assim, a sociedade espera do Juiz que ele saiba bem qual é, por exemplo, o impacto social de bloquear o Whatsapp ou de como uma nova modalidade de prestação de serviço via aplicativo de celular pode complicar um pouco o conceito jurídico de relação de trabalho. A sociedade espera que o Juiz, considerando toda a dinâmica social e sobretudo com os olhos na Lei, aquela que nossos representantes eleitos aprovaram, decida.
Ao olhar com um pouco mais de atenção, podemos perceber que a atividade do Juiz caminha mesmo no fio da navalha de um grande paradoxo. Vou tentar resumir isso dizendo: O Juiz deve, olhando para o futuro, aplicar regras que foram feitas para o passado. E aplicar regras não se trata só de resolver a crise entre as pessoas, mas também de organizar a forma de resolver essa crise, de modo coerente com o tempo em que o Juiz atua e com a Lei. Aquela que nossos representantes eleitos aprovaram.
Imagine, por exemplo, um juiz conduzindo um processo judicial eletrônico com a mentalidade de quem conduz um processo físico…
Colocada de lado a ironia da frase acima, o fato é que o Juiz que não olha o mundo tende a se fechar cada vez mais em seu gabinete resolvendo questões que ele sequer pode responder. Posso estender tranquilamente essa ideia à gestão de mecanismos de mediação e conciliação, à organização de processos, ao atendimento dos advogados e às respostas mais eficientes aos conflitos que antes o poder judiciário não conhecia, ou sequer era chamado a se manifestar.
Hoje, creio que, em decorrência de muitos desdobramentos políticos e de um certo exagero por todos os cantos do país, seja mais difícil reconhecer/discutir seriamente qual é a origem dessa dúvida. A “absurda” possibilidade de um juiz que vota, toma partido e torce para o Palmeiras para o Corinthians ou para o Santos e que sim precisa ter atividade social. Fato é que a relação do Juiz com a sociedade que lhe cerca, para além dos momentos que ele é chamado a se manifestar, é sim muito saudável e desejada.
Gostaria de citar dois exemplos disso que estou falando:
O primeiro é o do Dr. (professor) Gajardoni, juiz no interior de São Paulo, que, em 2014, implantou um sistema digital de atendimentono seu gabinete. Sim, o Dr. atende advogados por Skype, inclusive, a medida foi anunciada pelo Facebook.
Um segundo trata da gestão de grande volume de processos e a resposta do judiciário para isso. Um fenômeno chamado litigância em massa. Essa situação tem sido tratada de formas muito “criativas” por diversos tribunais e, mais especificamente, pelos juizados especiais (juizados de pequenas causas) espalhados pelo Brasil.
Uma iniciativa, seria, comprometida e interessante, vinda do Tribunal de Justiça de São Paulo e do CAJ (Centro de Apoio aos Juízes do Fórum Central de São Paulo), no ano de 2014, buscava se antecipar aos casos de peculiaridades massificadas, organizando o entendimento recorrente dos magistrados sobre determinados temas e divulgando aos juízes do Fórum Central estatísticas sobre o posicionamento do próprio tribunal.
Esses dois exemplos mostram que o Juiz deve sim se relacionar com o mundo para além do caso que lhe chega à mesa. Adequando sua atividade às necessidades e ao ritmo contemporâneo. Digo isso claro com a clareza de que o Juiz não deve se pautar por pressões sociais. Conhecer o ambiente social em que se atua e as necessidades da dinâmica social não é o mesmo que ceder às pressões e inclinar-se às emoções que a sociedade certamente projeta no poder representado pelo Juiz.
[1] Inclusive, na minha opinião, a norma mais bonita do Código de Processo Civil é justamente essa que trata da inércia jurisdicional e que tem um fundo poético inegável, falo do artigo 2° “O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.”
Photo by Disney. A Bela e a Fera (1991).