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O corpo da mulher (não está) à disposição da arte

Não é de hoje que os corpos femininos são objetificados sob o manto da arte. A nudez, a hipersexualização e as cenas de sexo que expõem somente a mulher já são tão naturalizadas, que muitas vezes passam batidas em filmes, pinturas, videoclipes musicais e apresentações artísticas diversas. Porém, nos últimos dias, ganhou destaque na mídia um episódio antigo mas que apenas recentemente veio à tona: a famosa cena da manteiga no filme O Último Tango em Paris foi, na verdade, uma cena de estupro real.

 

Até a sua morte, em 2011, a atriz Maria Schneider vinha declarando ter sido violentada pelo diretor Bernardo Bertolucci e pelo astro Marlon Branco quando a fatídica cena foi gravada. Mas, como é de praxe, seu relato, enquanto mulher, foi desacreditado. Maria tinha 19 anos na época e fazia sua estreia no cinema, enquanto seus dois companheiros de filmagem que, além de serem homens, já tinham bastante notoriedade. Sua palavra de pouco valia frente à deles.

 

Apesar das denúncias realizadas por Maria, somente em 2013, com a confissão de Bertolucci sobre o estupro, o caso ganhou a devida repercussão, vindo a ser compartilhado em massa nas últimas semanas, como parte da campanha do Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher. Logo, foi preciso que um homem reafirmasse a história para que ela ganhasse credibilidade. Bertolucci contou em uma entrevista a um programa de televisão que Brando e ele tiveram a ideia na manhã em que a cena foi filmada, e nada avisaram a Schneider, contando com a reação ‘espontânea’ da atriz. Nas palavras de Bertolucci:

 

“Eu não contei porque eu queria sua reação como menina, não como atriz. Eu queria que ela reagisse a cena em que ela se sentiria humilhada, que ela sentisse e gritasse ‘não, não’. E eu acho que ela nos odiou, a mim e ao Marlon, porque não contamos a ela esse detalhe da manteiga como lubrificante. Eu ainda me sinto muito culpado por isso. Eu não me arrependo de ter feito essa cena dessa maneira, mas me sinto culpado. Para fazer filmes, algumas vezes você precisa obter coisas e para isso você precisa ser completamente frio. Eu não queria que Maria fingisse a sua humilhação, a sua raiva. Eu queria que Maria sentisse. E por isso ela me odiou o resto da vida.”

 

Após O Último Tango em Paris, Schneider nunca mais realizou outra cena de nudez, e enfrentou problemas com drogas, depressão e tentativas de suicídio. Ela morreu em 2011, aos 58 anos, devido a um câncer e, em 2007, revelou em entrevista ao Daily Mail que havia se sentido “humilhada e violentada” por Bertolucci e Brando, “tendo sido transformada num símbolo sexual”, ainda tudo o que ela quisesse era ser respeitada e reconhecida como uma atriz. Não houve qualquer tipo de pedido de desculpas por parte dos homens envolvidos. Inclusive, após a repercussão negativa do caso, o diretor vem afirmando que, na verdade, só não teria contado sobre o uso da manteiga como lubrificante, relativiziando e diminuindo uma vez mais a dor e humilhação de Schneider.

 

Com mais de um milhão de visualizações, o vídeo da confissão de Bertolucci se tornou pauta de discussão nas redes sociais, nas organizações em defesa dos direitos da mulher e em Hollywood. Apesar de não ser recente, a declaração chocou atores e outros diretores da indústria do cinema.

 

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Marlon Brando e Bertolucci à frente e Maria Schneider ao fundo

O caso de Schneider também teve o relevante papel de trazer a discussão da violência contra a mulher no mundo artístico à tona, afinal não foi apenas Maria Schneider que foi sexualmente abusada pela indústria cinematográfica. Denúncias contra Charles Chaplin, Alfred Hitchcock, e Lars Von Triers foram realizadas e absolutamente nada foi feito para proteger essas mulheres e processar devidamente seus agressores, que continuam a ser vistos como verdadeiros “gênios do cinema”. Também ganharam notoriedade os relatos de abusos sexuais e morais praticados por Casey Affleck contra a produtora Amanda White e contra a diretora de fotografia Magdalena Gorka, durante a gravação do filme “I´m still here” (2008). Apesar disso, Affleck segue como um dos favoritos ao Oscar de 2017.

 

Até quando vidas femininas serão sacrificadas em nome da arte? Até quando continuaremos explorando o corpo e o sofrimento de mulheres para conseguir uma boa tomada, uma bela pintura, a gargalhada de um público? Por que ainda é aceitável que nossa dor sirva ao prazer alheio?

 

Para se ter uma ideia de como os corpos de mulheres são colocados à disposição da arte e do entretenimento (para além dos casos já citados), uma pesquisa realizada pela Universidade de Mount Saint Mary (Los Angeles) constatou que a nudez feminina é três vezes mais explorada do que a masculina no cinema. Segundo a pesquisa, 26% das personagens femininas entre os 100 filmes mais vistos em 2014 nos Estados Unidos apareceram nuas ou seminuas. Os homens, por sua vez, apareceram nessa mesma condição em apenas 9% dos filmes. A nota fica ainda mais discrepante ao se constatar que apenas 12% desses filmes tinham uma mulher em algum dos papeis principais.

 

Nas artes plásticas e na pintura, o nu feminino é amplamente aceito, enquanto o nu masculino ainda é tabu. De acordo com Eva Kernbauer, especialista em história da arte da Universidade de Artes Aplicadas de Viena, embora os nus masculinos sejam um tema comum em trabalhos artísticos de diversos séculos, a forma como homens e mulheres são retratados nunca foi igual. Enquanto a nudez feminina era usada para expressar beleza e erotismo e tratada como objeto de desejo, o nu masculino era associado à força e ao heroísmo, sendo, portanto, ameaçador e objeto de repulsa.

 

Além disso, em quantos filmes e romances temos personagens masculinos hipersexualizados? Por que é sempre a mulher que possui personagem com forte conotação sexual? É esse retrato machista e enraizado que coloca a figura feminina como objeto de desejo e a figura masculina como símbolo de força que legitima que abusos como o cometido contra Maria Schneider continuem acontecendo. E se a arte imita a vida e a vida também imita a arte, estamos constantemente retroalimentando a cultura do estupro.

 

Sem que consigamos de fato reconhecer e repudiar a violência contida em cada ato de violência, contra não apenas uma única mulher, mas contra todas as mulheres, não conseguiremos vencer as barreiras que ainda nos mutilam nos mais diversos setores artísticos. Nossa autonomia e bem estar seguirão em segundo plano, a serviço dessa “arte” que não nos representa.

 

Não estamos longe de sermos todas Maria Schneider. A única diferença entre a violência sofrida pela atriz e outras tantas mulheres anônimas pelo mundo, é que estas não tiveram de conviver com a reprodução em escala global e a ovação do pior momento de suas vidas em nome de uma arte que, para todos os efeitos, não nos serve.

 

Photo by United Arts/IMDB. In: Slate.com

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