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O caso Al Mahdi e a responsabilidade internacional por crimes contra o patrimônio cultural

A destruição do patrimônio cultural em regiões vitimadas por conflitos armados tem sido  cada vez mais objeto de condenação por parte da comunidade internacional. Assim foi com a destruição das estátuas de Bamiyan pelo Taliban, no Afeganistão, em 2000, ou, mais recentemente, com os ataques ao sítio arqueológico de Palmyra, pelo autodenominado Estado Islâmico, na Síria. A primeira tentativa de punir crimes contra o patrimônio cultural da humanidade na esfera internacional deu-se com o caso Al Mahdi. Os procuradores do Tribunal Penal Internacional (TPI), sabendo que teriam jurisdição para levar um nacional do Mali a julgamento, decidiram dar uma resposta à série de ataques promovidas por grupos rebeldes nesse país contra monumentos e edifícios de grande valor cultural, histórico e religioso. Após um pedido de abertura de inquérito pelos procuradores, um mandado de prisão contra Ahmad Al Faqi Al Mahdi foi emitido pelo Juízo de Instrução do TPI, que o acusava pelo ataque e destruição intencionais de dez prédios de valor religioso e histórico localizados em Timbuktu, no Mali. Os fatos imputados a Al Mahdi constituiriam crimes de guerra, previstos no artigo 8(2)(e)(iv) do Estatuto de Roma:

Atacar intencionalmente edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares.”

 

Os crimes de Al Mahdi ocorreram em um contexto de conflito armado no interior do Mali que teve início em janeiro de 2012. O exército do país foi perdendo o controle de algumas regiões para uma coalizão de rebeldes Tuareg com grupos fundamentalistas islâmicos, entre os quais o Ansar Dine, do qual Al Mahdi fazia parte. A histórica cidade de Timbuktu, declarada patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO em 1988, viu-se também dominada pelos grupos rebeldes, que impuseram suas próprias regras políticas e religiosas à população local, por meio de um governo próprio, que incluía um tribunal islâmico, forças policiais, além de uma “comissão para a mídia” e uma “brigada da moralidade” (chamada  Hesbah). Visto pela coalização fundamentalista como um expert em assuntos religiosos, Al Mahdi foi solicitado a chefiar a Hesbah.

 

Timbuktu tem uma história riquíssima e foi por séculos um pólo cultural de enorme importância, com bibliotecas que até hoje abrigam milhares de manuscritos medievais, além de ser conhecida como a cidade dos “33 santos”, pelos seus numerosos santuários homenageando santos da corrente sufista islâmica. Junto com as mesquitas, tais santuários têm ainda um papel relevante na vida social e religiosa da população local, que os visita constantemente. Tendo observado o comportamento da população local, os membros da coalizão, em grande parte estrangeiros, decidiram pela demolição dos santuários, por entenderem que se tratava de idolatria, e ordenaram a Al Mahdi que coordenasse tal operação. Al Mahdi, que era originário da região de Timbuktu, discordava da decisão mas terminou por acata-la. Como chefe da Hesbah, supervisionou a demolição de um total de dez monumentos (santuários e cemitérios) e participou pessoalmente de algumas das demolições, além da destruição de milhares de manuscritos antigos.

 

Um aspecto relevante desse caso é que se tratou do primeiro no TPI em que o acusado confessou os crimes, o que ocorreu logo no início da audiência de julgamento, após a leitura dos fatos constantes da acusação. Isso certamente influiu para que fosse o julgamento mais rápido desde que o TPI iniciou suas atividades. De qualquer forma, o processo seguiu o curso normal, mesmo após a confissão, de forma que o acusado teve a oportunidade de expressar arrependimento pelos seus atos e fazer um pedido a outros muçulmanos que não agissem da mesma forma que ele. O TPI decidiu pela condenação a 9 anos de prisão, e afirmou que algumas circunstâncias atenuantes informaram o conteúdo da sentença, como a confissão, o arrependimento e o comportamento  cooperativo de Al Mahdi.

 

Resta saber quais serão as repercussões do caso no plano internacional. Desde que iniciou suas atividades, o Tribunal Penal Internacional teve alguns sucessos mas também um bom número de reveses. Algumas ações intentadas por seus procuradores não foram levadas a termo, de modo que certos indivíduos acusados de genocídio ou crimes de guerra, por exemplo, continuam soltos. Além disso, o Tribunal vem sofrendo críticas por uma suposta tendência a processar indivíduos oriundos da África. De qualquer modo, os procuradores do caso afirmaram esperar que a condenação impeça outros ataques contra o patrimônio cultural. Isso certamente não acontecerá da noite para o dia, mas o fato de que foi estabelecido um precedente nesse campo pode sim contribuir para que haja um maior respeito pelo patrimônio cultural ao redor do mundo.

 

Bibliografia

AKSENOVA, Marina. “The Al Mahdi Judgment and Sentence at the ICC: a Source of Cautious Optimism for International Criminal Justice.” EJIL: Talk! 13/10/2016. Disponível em https://www.ejiltalk.org/the-al-mahdi-judgment-and-sentence-at-the-icc-a-source-of-cautious-optimism-for-international-criminal-justice/#more-14620

INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. “Summary of the Judgment and Sentence in the case of The Prosecutor vs. Ahmad Al Faqi Al Mahdi.” Haia, 2016.

KERSTEN, Mark. “Some Thoughts on the Al Mahdi Trial and Guilty Plea”. Justice in Conflict. 24/08/2016. Disponível em https://justiceinconflict.org/2016/08/24/some-thoughts-on-the-al-mahdi-trial-and-guilty-plea/

OPEN SOCIETY FOUNDATIONS. “Ahmad Al Faqi Al Mahdi at the ICC: Confirmation of Charges.” Open Society Justice Initiative. Fevereiro 2016.Disponível em https://www.opensocietyfoundations.org/sites/default/files/briefing-almahdi-icc-confirmation-charges%2020160225.pdf

 

Foto por Odilia. In: Wikimedia Commons.

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