Foi publicado na última terça, 27/07, o Decreto nº 10.755, que revoga o Decreto nº 5.761/2006, normativa que até o momento regulamentava a dinâmica dos incentivos fiscais à cultura no âmbito federal, bem como modifica disposições dos Decretos nº 6.299/2007 e nº 9.891/2019, que tratam, respectivamente, do financiamento de programas e projetos voltados para o desenvolvimento de atividades audiovisuais, e do Conselho Nacional de Política Cultural.
Com o novo Decreto, haverá mudanças na sistemática dos projetos apresentados perante a Lei Federal nº 8.313/1991, que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e ficou popularmente conhecida como Lei Rouanet. Explicamos as principais delas abaixo:
Finalidades dos projetos
Até então, poderiam ser financiados pela lei projetos que, entre outras finalidades listadas no art. 2º, busquem “erradicar todas as formas de discriminação e preconceito” ou aqueles com “caráter inovador ou experimental”. Tais termos foram modificados para, respectivamente: “promoção da cidadania cultural, da acessibilidade artística e da diversidade” (inc. VI), excluindo-se, portanto, das finalidades da legislação a menção expressa ao combate a discriminações e preconceitos; e “arte digital e em novas tecnologias” (inc. X), retirando, assim, a menção a ações de cunho “experimental”, tratando-as simplesmente como aquelas relacionadas à tecnologia.
Ainda, foram incluídas outras finalidades antes não existentes:
- Apoiar as atividades culturais de caráter sacro, clássico e de preservação e restauro de patrimônio histórico material, tombados ou não (inc. XII);
- Apoiar e impulsionar festejos, eventos e expressões artístico-culturais tradicionais, além daquelas já tombadas como patrimônio cultural imaterial (inc. XIII); e
- Apoiar as atividades culturais de Belas Artes (inc. XIV).
Planos Anuais de Atividades
Planos Anuais de Atividades, até então direcionados a custear a manutenção de instituições culturais sem fins lucrativos como um todo e aos quais, entre outras regras específicas, não se aplicam os limites de captação para projetos comuns (veja o art. 4º da Instrução Normativa nº 02/2019), a partir de agora só podem ser apresentados por “instituições exclusivamente culturais” cujas atividades estejam relacionadas a “museus públicos”, ao “patrimônio material e imaterial” ou a “ações formativas” (art. 24).
Demais museus e instituições culturais sem fins lucrativos de caráter privado que desejem apresentar projeto na forma de Plano Anual terão que ser consideradas “relevantes para a cultura nacional” pela Secretaria Especial de Cultura – e esse procedimento ainda precisará ser estabelecido em Instrução Normativa.
Plano de Distribuição e cortesias a patrocinadores
Patrocinadores continuam a poder receber 10% da quantidade total de produtos resultantes do projeto, proporcionalmente ao investimento efetuado e para que sejam distribuídos gratuitamente, sem que isto constitua vantagem indevida.
Entretanto, se o projeto tiver somente um ou dois patrocinadores, cada um deles poderá receber apenas até 5% dos produtos (arts. 31 e 47). Este número anteriormente era de 10%.
Essas mudanças impactam o disposto no art. 20 (em especial, o item “b” do inc. I) da mencionada IN nº 02/2019, que determina os percentuais para oferecimento de produtos, bens e serviços do projeto a serem respeitados no momento em que o proponente elabora o Plano de Distribuição no sistema Salic.
Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC)
Uma das alterações mais significativas propostas pelo novo Decreto diz respeito à atuação e composição da CNIC. Conforme a IN nº 02/2019, ainda em vigor (mas que provavelmente será alterada ou substituída), a CNIC tem competências importantes na análise de propostas culturais, com destaque para: (i) possibilidade de manifestação após o exame de admissibilidade da proposta (art. 24, caput e § 1º, da IN); e (ii) apreciação, com vistas à homologação da execução, após a emissão do parecer técnico pela unidade técnica de análise (art. 28, caput, da IN). Dessa forma, a CNIC até o momento desempenhava um papel verdadeiramente deliberativo no processo de aprovação de novos projetos.
Com o novo regulamento, a CNIC torna-se instância recursal consultiva (art. 6º, § 5º), enquanto as decisões quanto aos incentivos fiscais ficam agora com a Secretaria Especial de Cultura (art. 38, inc. I).
Tal transformação no papel da CNIC ensejou outras alterações em seu funcionamento, todas levando à centralização de decisões na figura do Secretário. A começar pelas normas que regem a CNIC, que passarão a ser editadas pela Secretaria (art. 46) – não havendo mais normas internas aprovadas pelos seus próprios membros, como acontecia anteriormente.
A mais evidente mudança, porém, é a concessão de voto de qualidade ao Presidente da CNIC (que já no anterior Decreto podia deliberar ad referendum da Comissão) (art. 38, § 3º). Soma-se a isso a nova previsão de que o Secretário Especial de Cultura poderá delegar ao Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura o exercício da presidência da CNIC (art. 39, § 1º), sendo que o Presidente delegado também terá voto de qualidade (art. 39, § 7º).
Ainda, poderá o Presidente da CNIC “convidar especialistas e representantes de outros órgãos e entidades, públicos e privados, para participar de suas reuniões, sem direito a voto” (art. 39, § 8º). Na prática, essa disposição preocupa porque significa que órgãos e entidades quaisquer do atual Governo Federal podem estar presentes nas reuniões da CNIC. Apesar de não haver direito a voto, a mera presença de alguns agentes pode servir como forma intimidatória para aprovação (ou não) de determinadas propostas culturais.
Por fim, houve alteração na forma de indicação dos membros que compõem a CNIC no que se refere aos “seis representantes de entidades associativas de setores culturais e artísticos, de âmbito nacional” (art. 39, inc. V). A definição de tais membros é de muito interesse, uma vez que são eles que formarão uma CNIC paritária entre o Governo e a sociedade civil. O Decreto anterior (art. 40) determinava que a indicação de tais membros deveria contemplar as seguintes áreas:
- Artes cênicas;
- Audiovisual;
- Música;
- Artes visuais, arte digital e eletrônica;
- Patrimônio cultural material e imaterial, inclusive museológico e expressões das culturas negra, indígena, e das populações tradicionais; e
- Humanidades, inclusive a literatura e obras de referência.
Essas áreas não são por acaso. O Anexo IV da IN nº 02/2019 define os segmentos culturais enquadrados no art. 18, § 3º da Lei Rouanet (ou seja, com direito a renúncia de 100% dos impostos recebidos por parte do Estado – em oposição ao art. 26, que prevê segmentos culturais contemplados com 40% ou 60% dessa renúncia fiscal) a partir dessas mesmas áreas.
Por essa razão é importante atentarmos para quais segmentos culturais o novo Decreto cria, pois eles podem ser refletidos em nova Instrução Normativa. Fato é que o art. 43 do novo Decreto redefiniu a forma de indicação dos membros da sociedade civil que vão compor a CNIC com base nas seguintes áreas:
- Arte Sacra – conjunto formado por arquitetura, pintura, escultura, música, dança, teatro e literatura;
- Belas Artes – conjunto formado por arquitetura, pintura, escultura, música, dança, teatro e literatura;
- Arte Contemporânea – conjunto formado por arquitetura, pintura, escultura, música, dança, teatro e literatura;
- Audiovisual – refere-se ao conjunto de filmes, documentários e jogos eletrônicos;
- Patrimônio Cultural Material e Imaterial;
- Museus e Memória.
Alguns desses segmentos culturais novos correspondem exatamente à inclusão das novas finalidades dos projetos que serão financiados pelo Pronac, conforme explicado no item I acima.
Comissão do Fundo Nacional da Cultura
A Comissão do Fundo Nacional da Cultura já existia no Decreto revogado, mas a nova regulamentação centraliza as determinações sobre a composição e a atuação da referida Comissão na figura do Secretário Especial de Cultura, além de atribuir a Secretaria-Executiva desta Comissão à Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (art. 15).
Além disso, a Medida Provisória nº 1.058, publicada também no último dia 27/07, integra a referida Comissão à estrutura do Ministério do Turismo.
Dentre as competências desta Comissão, foi mantida a apreciação de propostas de plano anual com recursos do Fundo Nacional da Cultura (FNC) das entidades vinculadas ao Ministério do Turismo.
Aplicação de logomarcas
O novo texto deixou claro aquilo que os projetos em curso já vinham praticando desde que a Secretaria Especial foi transferida do Ministério da Cidadania ao do Turismo em maio de 2020: deve-se aplicar nos produtos e peças de divulgação as logomarcas do Governo Federal, do Ministério do Turismo e da Secretaria Especial da Cultura (art. 50). O Decreto de 2006 estava desatualizado quanto ao assunto, pois ainda constava “Ministério da Cultura”, órgão extinto desde janeiro de 2019.
A inserção das logomarcas deverá seguir as regras de manual a ser elaborado pela Secretaria – o qual, até o momento, não se encontra publicado no site oficial da Lei Federal.
Ainda, o Decreto proíbe a “utilização de logomarcas, símbolos ideológicos ou partidários” tanto nas divulgações feitas por proponentes quanto por patrocinadores; e dependerão de aprovação prévia da Secretaria Especial de Cultura a “inauguração, o lançamento, a divulgação, a promoção e a distribuição”, por Estados, Distrito Federal e Municípios, de produtos, peças promocionais e campanhas institucionais relativas a projetos realizados com recursos da Lei Federal. Caso os entes federativos não respeitem essa regra, o projeto em questão poderá ser reprovado parcial ou totalmente.
Como ficam os projetos em andamento?
Os projetos aprovados até a última segunda-feira (26/07), estarão válidos somente até 31/12/2021 e precisarão se adequar ao novo regramento. Caso tal adequação não aconteça, para aqueles que já tenham captado recursos, o proponente deverá, até a data-limite, apresentar prestação de contas; e os projetos sem captação serão arquivados (art. 53).
Para prorrogar o período de captação de recursos e execução para 2022 em diante, será necessário solicitar à Secretaria adequação do projeto às novas regras.
Conclusões
O novo Decreto entrou em vigor já no dia 27/07 e, em grande parte, suas determinações dizem respeito à concentração das avaliações e aprovações dos projetos culturais na Secretaria Especial de Cultura e, em última instância, na figura do Secretário Especial de Cultura ou por quem ele expressamente indicar, uma vez que os órgãos colegiados foram enfraquecidos.
Tal percepção se materializa em diversos artigos, como, por exemplo: (i) no art. 24, inc. II, ao determinar que museus e instituições culturais sem fins lucrativos de caráter privado apenas terão seus planos anuais de atividades autorizados se considerados relevantes pela Secretaria Especial de Cultura; (ii) no art. 33, ao determinar que apenas as produções culturais independentes (de produção cinematográfica, videográfica, fotográfica, discográfica e congêneres) autorizadas pela Secretaria poderão usufruir da renúncia fiscal do Estado; e (iii) no art. 50, obrigando Estados, Municípios e Distrito Federal a pedir autorização para lançar e divulgar produtos, peças promocionais e campanhas institucionais resultantes de projetos realizados com recursos de incentivo fiscal ou do FNC.
Resta aguardar a publicação de nova Instrução Normativa, para esclarecer os pontos em aberto do Decreto e também consolidar os já fortes indicativos de mudanças de segmentos culturais, nos quais as instituições culturais e proponentes em geral poderão ter que passar a se enquadrar.
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