O dia 8 de março, dia internacional da mulher, não foi criado para ser celebrado. Foi criado para que as pessoas possam refletir sobre a dura realidade generificada e, principalmente, sobre os caminhos possíveis para a superação dessa desigualdade. No dia 08 de março de 1857, 129 tecelãs de Nova Iorque foram mortas carbonizadas dentro da fábrica onde trabalhavam porque organizaram uma greve por melhores condições de trabalho e contra a jornada de doze horas. Seus patrões e a polícia trancaram as portas da fábrica de tecelagem e atearam fogo, matando as 129 operárias carbonizadas.
A manifestação das operárias chamou a atenção na época por ser a primeira greve organizada exclusivamente por mulheres e pelo terrível desfecho. A sensibilização da sociedade sobre o episódio e pelas causas femininas foram aumentando, e em 1910 surgiu a ideia de criar uma data para marcar as questões femininas e lembrar a morte das operárias.
Durante a segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, realizada na Dinamarca, a famosa ativista dos direitos das mulheres, Clara Zetkin, propôs que o 8 de março fosse declarado como o Dia Internacional da Mulher. Em 1911, mais de um milhão de mulheres se manifestaram e a data passou a ser comemorada no mundo inteiro.
No entanto, apesar desse grande peso político, o que mais se observa é a desvirtuação desse movimento e seu esvaziamento para que se torne uma data meramente mercantil, trazendo com isso uma verdadeira celebração das desigualdades de gênero. São enxurradas de promoções de produtos e serviços voltados para o público feminino de maneira estigmatizada que reforçam essa desigualdade, se apropriando do tal selo roxo para vender mais.
Essa apropriação é exatamente o que Slavoj Zizek chamou de o “capitalismo global buscar uma face humana”, como uma forma de se fortalecer e se adequar a uma nova realidade. Assim, ao invés de utilizarmos esse momento para fortalecer as mulheres, sejam trabalhadoras, produtoras e outras mais, as marcas insistem em focar-se em consumidoras que estejam completamente engessadas nos seus papeis de gênero.
Neste sentido, vemos a publicidade como um grande agente no reforço destes estereótipos. Todo ano é a mesma coisa: são propagandas e campanhas para valorizar a feminilidade, os padrões de beleza e as tarefas tipicamente femininas, tais quais as domésticas e maternais e, por de trás da reafirmação do que é ser mulher na nossa sociedade, a venda de produtos para endossar os papéis de gênero.
Apesar de percebermos que está havendo uma diminuição nesse tipo de abordagem mercadológica, talvez até um sinal de maior sensibilidade quanto ao atual momento por parte das empresas, ainda vemos esse tipo de propaganda machista ser veiculada. Neste ano, felizmente foram menos publicidades deste teor, mas, ainda assim, algumas chamaram a atenção por errarem feio com as atuais reivindicações femininas.
Tivemos o Grupo Pão de Açúcar reforçando esse papel estigmatizado de delicadeza e fragilidade feminina com sua campanha “Toda mulher merece um cuidado especial”, oferecendo descontos em produtos de perfumaria.
Também chamou a atenção a promoção oferecida pela Livraria Saraiva, que, no início do mês de março, realizou a campanha Semana da Mulher, com “produtos especialmente selecionados”. A campanha tem como essência o cupom de desconto de até 50% na compra de livros, que pode ser utilizado tanto no site quanto nas lojas físicas. Ao que pode parecer, seriam em todas as temáticas e títulos do site, no entanto as temáticas são restritas. O site divide os livros por categorias voltadas especialmente ao público feminino, enquadrando-os nas seguintes temáticas:
mulheres românticas, fitness, fashion, religiosas, para dançar, mamães, negócios, para o escritório (“mulheres organizadas”), geeks, tecnologia, música, filmes e séries.
Dessa forma, o que se observa é que o tipo de produto oferecido ao público feminino se manteria sendo aqueles de romances estereotipados, livros de bem-estar e beleza, além de culinária. Aquela velha história de “coisa de mulher“.
Ao contrário da Saraiva, a Editora Boitempo soube utilizar deste momento para promover livros escritos por mulheres ou que tenham temática feminista, favorecendo a venda de produtos que de fato possam acrescentar ao público pretendido, sem reforçar estereótipos. A editora conseguiu trazer uma mensagem e reflexão sobre a data, ao mesmo tempo em que vendia seus produtos.
Já não há mais justificativa aceitável para que as campanhas publicitárias continuem a andar na contramão dos movimentos sociais e das reivindicações atuais das mulheres que, diga-se de passagem, são seu público alvo. Não podemos esquecer o impacto que a publicidade causa em seus destinatários, de forma que é preciso exigir que ajam de maneira consciente.
Algumas mulheres, descontentes com esse tipo de abordagem machista e estereotipada, estão oferecendo consultoria a essas marcas, inclusive, para que possam alinhar suas estratégias de marketing com a sociedade que ambicionamos. É o caso da Think Eva, que busca estabelecer o diálogo das empresas com as mulheres de verdade sem cair em preconceitos que apenas reforçam esta já moribunda sociedade. Sua participação pode ser notada na última campanha da Avon, que contou com modelos de vários tipos físicos e gêneros mais fluidos, como a própria cantora Liniker.
Portanto, esta é uma data que deveria suscitar reflexões acerca da estrutura patriarcal de nossa sociedade. O capitalismo vem se aproveitando inclusive do discurso feminista para poder legitimar maiores opressões sobre as próprias mulheres. Ver o 8 de março como um dia para se ganhar flores, massagens ou descontos no salão de beleza é completamente silenciar o potencial transformador que esta data pode proporcionar na conscientização da sociedade e no empoderamento das mulheres. Nas palavras de Nancy Fraser: “o capitalismo desorganizado vende gato por lebre ao elaborar uma nova narrativa do avanço feminino e de justiça de gênero”.
Foto: Women`s Right Demonstration, 1989. Duke Univerity Archives. In: Flickr.