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A essencialidade de uma Cultura Constitucional – Parte II

Há mais ou menos um mês, tentei expor os motivos pelos quais seria importante ter a Constituição como norma suprema, estável e vinculante, isto é, possuir uma Cultura Constitucional vigorosa – quais sejam, (i) a garantia de segurança jurídica e (ii) a possibilidade de a sociedade construir o programa democrático nela desenhado.

 

Mas, como qualquer patologia, para que possamos tratar a fragilidade de nossa Cultura Constitucional, faz-se necessário identificar as suas causas. Ou seja, devemos responder a seguinte questão: por que não se é dado o devido respeito ao texto constitucional?

 

Levanto aqui algumas hipóteses, sendo elas de natureza (i) técnica; (ii) política; e (iii) histórica, as quais guardam entre si certo grau de complementariedade.

 

A primeira delas tem relação com a técnica empregada pelos constituintes em sua elaboração, que culminou em um texto longo e detalhista, abrangendo temas de cunho não necessariamente constitucional. Razão para isso se encontra, principalmente, no momento histórico que representou a redemocratização – a primeira vez, em pouco mais de 21 anos, que a sociedade e seus diversos setores e grupos tiveram a chance de ter seus interesses representados politicamente.

 

Ora, o inchaço do texto constitucional, ao mesmo passo que serviu para dar importância a diversos temas que nunca tinham recebido a devida atenção, provocou a nivelação negativa de temas prioritários a outros nem-tão-prioritários.

 

Na medida em que não há hierarquia entre normas constitucionais – salvo aquelas tidas como cláusulas pétreas -, temas como “direitos sociais” ou regramento do processo legislativo possuem, do ponto de visto jurídico, a mesma relevância que a forma de custeio do serviço de iluminação pública. E, dessa forma, consolidando a máxima: “se tudo é prioritário, nada é prioritário”.

 

A segunda versa acerca da relação existente entre Constituição Federal de 1988 e o jogo político desenvolvido no contexto na Nova República, compreendendo uma vertente institucional relativa à interação de cada um dos Três Poderes com o texto constitucional e uma vertente social relativa à interação da própria sociedade com este.

 

Inegável que esta hipótese possui um nítido aspecto sociológico, na medida em que propõe que tanto os órgãos políticos e administrativos quanto a sociedade civil rechaçam, ignoram ou, ainda, descreditam a Constituição Federal.

 

Isso sem se deixar de lado o fato de que existe um liame interno em cada uma dessas vertentes: (i) o descrédito político-institucional é motivado por uma deturpação do ideal republicano e ético por parte dos agentes públicos, o que provoca (ii) descrédito da sociedade civil no texto constitucional, na medida em que este se mostra incapaz de vincular os agentes com a devida eficácia. Por este último vem, por sua vez, reforçar o primeiro, criando um ciclo vicioso.

 

Por fim, a terceira e última hipótese se propõe explicar a origem desse descrédito. Comparativamente aos Estados Unidos da América, o direito brasileiro não teve origem em um rompimento com a tradição europeia, mas, ao contrário, representou uma continuidade – seja em relação à estruturação do Estado, seja em relação à manutenção de ordenamentos portugueses até a promulgação de novos em substituição (artigo 179, inciso XVIII, da Constituição Imperial de 1824).

 

No caso norte-americano, ainda que se tenha mantido o sistema de precedentes da Common Law, o rompimento se deu, de forma radical, na concepção de um modelo de estado republicano e na estruturação deste em torno do texto constitucional. Consequentemente, este passou a ser o núcleo de todo o ordenamento jurídico – o que vai influenciar a construção jurisprudencial do controle de constitucionalidade, como se vê no caso Marbury versus Madison.

 

Essa ideia vem bastante explícita no Federalista nº 78[1], de Alexander Hamilton:

“A constituição é, de fato, e deve ser respeitada pelos juízes como a lei fundamental. Isso porque lhes cumpre investigar o sentido de suas normas, bem como o sentido de quaisquer atos proferidos pelo órgão legislativo. Se houver desacordo entre ambos os textos, aquele que possuir validade e vinculação superior deve, claramente, prevalecer; ou, em outras palavras, a Constituição deve prevalecer sobre a lei, o desígnio do povo deve prevalecer sobre o de seus agentes.

 

Todavia, no Brasil, a tradição jurídica portuguesa se manteve, a qual influenciada pela doutrina liberal francesa, em especial pelas obras de Jean-Jacques Rousseau, enxergava a Lei oriunda do Parlamento como a expressão da Vontade Geral – a qual é o fundamento supremo de todo o contrato social[2].

 

Isso significa dizer que, no início de nossa tradição jurídica independente, não era a Constituição que possuía o status supremo, mas, sim, a força política do Parlamento. Ausente de um mecanismo de controle de constitucionalidade próprio à época, a retórica da norma constitucional como fundamento era mero discurso. Essa noção, e o controle de constitucionalidade, só veio a ser introduzida em nossa tradição a partir da instauração do regime republicano – no entanto, sem qualquer carga político-social, mas como transposição do instituto norte-americano.

 

 

[1] Alexander HAMILTON, James MADISON, et John JAY. The federalist papers. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/1404/1404-h/1404-h.htm – Tradução livre de: “(…) A constitution is, in fact, and must be regarded by the judges, as a fundamental law. It therefore belongs to them to ascertain its meaning, as well as the meaning of any particular act proceeding from the legislative body. If there should happen to be an irreconcilable variance between the two, that which has the superior obligation and validity ought, of course, to be preferred; or, in other words, the Constitution ought to be preferred to the statute, the intention of the people to the intention of their agents.

 

[2] Jean-Jacques ROUSSEAU. Contrato social. Livro I, Capítulo VI – “Se se separar do pacto social tudo o que não é de sua essência (…) ele se reduz aos seguintes termos: ‘Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e nós recebemos cada membro como parte indivisível do todo’”.

 

Photo: Photopin.

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