A questão da existência de um engajamento político obrigatório dos artistas ganhou novos exemplos recentes da sua “espinhosidade”: no Twitter, o Secretário de Saúde da Bahia disparou críticas contra a cantora Ivete Sangalo, afirmando que ela deveria ter sido mais ativa na luta contra a pandemia de Covid-19. Em resposta, a artista foi taxativa: “Não me faça ensinar o seu trabalho, pois não permitirei que faça o meu.” Em edição do programa Roda Viva da TV Cultura que contou com a participação da apresentadora Ana Maria Braga, um dos entrevistadores fez a seguinte pergunta: “quando você veio aqui da última vez, você disse que não se manifestaria politicamente porque o que você faz é entretenimento. Não chegou a hora de a gente ver a Ana Maria cidadã?” A apresentadora retrucou: “olha, isso que você tá dizendo é dizer que eu não sou cidadã.”
A questão poderia ser resumida da seguinte forma: artistas tem obrigação moral de se engajarem no debate político? Ela é complexa e antiga. As relações entre arte e a política remontam à gênese mesma da sociedade.
Augusto Boal, em seu Teatro do Oprimido, faz análise interessantíssima, baseada nos ensinamentos aristotélicos, de como a tragédia e a comédia cumpriam diferentes formas de direcionamento do corpo coletivo na Grécia antiga. Na tragédia, escolhe-se um herói que, munido de diversas qualidades, passa por privações e dificuldades até atingir um ponto de bonança na sua narrativa. Ocorre que este mesmo herói, firme em suas boas qualidades, é acometido de um defeito – uma falha do espírito, como a soberba ou a ganância, que o fará entrar em decadência, a despeito da soma de suas virtudes. É o que se dá com Édipo – exímio guerreiro, chega ao topo da hierarquia de seu reino, mas, cegado por sua ambição, passa desapercebido pelo fato de que matou o próprio pai e casou-se com a própria mãe. Desolado, arranca os próprios olhos, vítima de si mesmo.
A plateia, envolta na narrativa, se enxerga no herói, vibra por ele, o reprime por seus erros e, quando defrontada com o nexo causal entre a falha de espírito e o mal que ela causou ao protagonista, sai do espetáculo em catarse, mas não qualquer catarse: sai do espetáculo sutilmente compelida a expurgar de si mesma o traço de personalidade retratado na peça como reprovável ou maligno.
É daí que deriva o que Augusto Boal chamou de sistema trágico coercitivo: o dramaturgo elege uma qualidade tida como indesejável de ser cultivada nos cidadãos, a incute num personagem fictício, o submete a um sofrimento atribuído a esta qualidade maléfica e, apresentando a obra concluída ao público, exerce sobre ele verdadeiro controle social, direcionando quais qualidades do espírito o Estado deseja que o homem cultive.
Se a arte exerce papel de manutenção do status quo, é claro que ela também exerce papel de ruptura – e talvez neste papel resida o que há de mais belo nesta manifestação da psique humana. Como contraponto à tragédia, a comédia se prestava à ridicularização de certos costumes, promovendo não a conservação de hábitos, mas a exposição destes e sua possível revisão. Não é a toa que regimes totalitários comumente dirigem sua ira antidemocrática sobre obras de literatura: na fogueira dos censores, esperam silenciar o pensamento divergente, tão caro aos arranjos democráticos e à liberdade de existência.
Feita essa pequena digressão, cumpre indagar se a aptidão política congênita da arte impõe aos seus operários – artistas, escritores, poetas, atores, músicos, bailarinos, performers, designers, arquitetos, cenógrafos, compositores; a lista é infinda – algum tipo de dever moral para com o debate político contemporâneo.
Artistas são uma classe que, embora demonizada por parcela da sociedade – como sendo vagabundos, comunistas, arruaceiros, dentre tantos outros epítetos “lisonjeadores” – possuem influência incontestável em diversos âmbitos da vida em comum, inclusive na vida daqueles que tanto menosprezam a função que eles exercem. Artistas moldam nossa personalidade e nosso caráter: uma música descoberta por acaso, ao trocar de estações no rádio (ou, para atualizar a linguagem, ao trocar de playlists no Spotify), que toque verdadeiramente nosso coração, será lembrada por nós por todo o sempre, evocando quaisquer sentimentos que possam ser associados à sinfonia. Neste ínterim, de vinculação com a obra, nasce, também, outro vínculo: entre espectador e o artista.
Tocados de alguma forma pela obra, procuramos saber quem é seu criador: pesquisamos sua trajetória, seus gostos, onde estudou, gastamos tempo e dinheiro indo em seus show, sarais, em sessões de cinema para ver suas performances, compartilhamos religiosamente suas publicações nas redes sociais, dedicamos, enfim, uma parcela significativa de nossas vidas em prol desse artista, e fazemos esse esforço felizes da vida, obrigado. A obra do artista passa a moldar nossa personalidade, nosso valores, enfim, funda parcela significativa de quem nós somos.
Talvez seja por esta quase simbiose entre e obra e nossa individualidade que acabamos por buscar no artista referências que porventura não estavam ali. É claro que há artistas que são vocais sobre seu posicionamento político, quando não fazem da política matéria prima mesma de seu trabalho. Mas há casos em que o artista ocupa posição neutra em relação ao debate público e, ainda assim, seus fãs-consumidores irão buscar no seu ídolo algum tipo de opinião.
Tomemos o exemplo de um dos maiores fenômenos da música brasileira: Anitta. Anitta fez sucesso e fortuna em um gênero musical que é conhecido por letras sem muita indagação filosófica: o funk. É improvável que alguém vá buscar um hit da cantora para se debruçar sobre questões existenciais: Anitta produz o tipo de arte que se busca quando queremos esvaziar a mente. (Cumpre aqui ressaltar que o autor do presente texto não tem nada contra o funk e, inclusive, é fã da cantora).
Apesar da aparente distância entre o funk de Anitta e política brasileira, em 2018 a artista se viu em meio a uma agitada polêmica. Ela seguiu no Instagram um perfil que apoiava Jair Bolsonaro, à época candidato à presidência da República. O fato gerou indignação nos fãs da artista. Anitta tem grande apelo com o público LGBTQIA+, vítima comum das falas discriminatórias de Bolsonaro, e foi deste nicho específico de seu público que veio a maior parte das críticas e da cobrança por um posicionamento claro.
Em nota, a cantora declarou o seguinte: “Hoje eu comecei a ser atacada, xingada e ameaçada porque eu segui uma amiga que expôs publicamente minha intenção de voto. Também estão fazendo o mesmo com minha amigo, que eu conheço há mais de 7 anos, e eu não gostaria de falar com ela por causa da sua posição política. Eu tenho sim o meu candidato, como cidadã eu pesquisei e escolhi, dentro do que acredito, o meu candidato, mas assim como vocês eu tenho direito ao meu voto secreto. Eu não quero dar posição. Não é porque eu sou uma artista e tenho uma vida pública que eu sou obrigada a dizer qual é o meu voto. […] Eu não sou obrigada a fazer política pra ninguém”.
Quem está certo?
Do ponto de vista jurídico-constitucional, arrisco dizer que Anitta tem, ao menos, uma parcela de razão. O art. 5°, inciso IX da Constituição da República Federativa do Brasil alça ao patamar de direito fundamental a liberdade de expressão e pensamento. Se a liberdade de expressar encontra guarida constitucional, há de se concluir, a contrario sensu, que igualmente está protegida a liberdade de não expressar, a despeito de não estar explicitamente prevista na Carta Magna. Isso porque não há lógica em se entender que para resguardar a liberdade do pensamento deva esta ser entendida como obrigação de pensamento. Obrigar alguém à se manifestar é o mesmo que silenciar: a opinião proferida por imposição externa, sem fidelidade ao espírito de quem a emite, é tão nefasta quanto a censura. Logo, sob o escudo da liberdade de não pensamento também estão abrigados os artistas, já que igualmente membros da sociedade brasileira como qualquer outro cidadão.
Isso equivale a dizer que seus fãs não tem legitimidade alguma nas suas reivindicações?
A relação artista-público é uma relação sui generis. Não cabem comparações ou analogias com contratos civis ou qualquer outro tipo de avença. Os artistas muitas vezes moldam nossa história e caráter e nós moldamos a história (e também, frequentemente, o vultoso patrimônio) dos artistas. Se os fãs não possuem direito, há no mínimo, uma expectativa de direito. E ela é legítima.
Decerto que, se há um vácuo de lideranças coerentes e eficientes nos espaços de poder (casas legislativas e chefias de governo), não pode-se pretender que esse vácuo seja preenchido forçosamente por uma classe mais afeita aos ofícios do espírito. Contudo, partindo do pressuposto que a relação artista-público não é mera relação de consumo, mas uma conexão incomparável, é de bom tom que o artista esteja atento aos anseios do público que o ampara (e o sustenta), sob pena de se converter em mero “demagogo dos palcos”, vendendo um produto sem qualquer consideração pelas pessoas que lhe dão suporte e sustento (não muito diferente dos políticos).
Mais importante que delimitar direitos e deveres políticos de uma classe tão heterogênea seria criar um ambiente social em que a opinião possa fluir livremente, sem medo de represálias – ou de cancelamento. Este deveria ser o espaço democrático sobre o qual toda e qualquer atividade artística deveria florescer.
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