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Arte de Rua em São Paulo: Parte II

Como se sabe, há milênios os homens se comunicam através de pinturas e desenhos. Primariamente, a comunicação era pictográfica, isto é, uma ideia era exprimida através de uma cena, um desenho, cenas figuradas ou simbólicas, que representavam uma caçada, um ritual ou imagens rotineiras de determinada cultura. Posteriormente, com o desenvolvimento humano e a necessidade de utilizar uma comunicação mais efetiva, surgiram os códigos ideográficos. Esses códigos são responsáveis por externar uma ideia através de um símbolo, exatamente como fazemos hoje, com nossos alfabetos próprios e imagens carregadas de significado.

 

Dessa mesma maneira, a pichação tornou-se instrumento indispensável para a comunicação urbana – seja entre os pichadores ou entre um artista e os moradores da cidade – e para a representação social de grupos desfavorecidos. Nesse ponto, cabe fazer uma breve explicação acerca do termo “pichação”: nesse texto, “pichação” representará toda e qualquer inscrição em paredes, seja pixo, seja grafite, seja escrita de manifestação política, carregada ou não de significado, que tenha ou não conceitos artísticos. De outro modo, “pixo” ou “pixação” representará as inscrições paulistanas.

 

Para entender a importância de uma arte marginal para a formação e comunicação urbana, temos que voltar um pouco na história. Mais precisamente para a Idade Moderna, assim definida nas palavras de Marshall Berman[1]:

 

“O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão.” No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização”. ”

 

 

Nesse turbilhão de acontecimentos, com intensas mudanças, os pilares da sociedade passaram a ser questionados. Afinal, como dá o nome ao livro de Berman, “tudo que é sólido desmancha no ar”. E, não havendo mais solidez ou concretude nas relações, os conceitos que regiam a sociedade não satisfaziam mais seus indivíduos, transformando essas relações sociais e econômicas em uma constante metamorfose de valores.

 

É nesse contexto social que se insere a substituição gradual do trabalho humano por máquinas, a manufatura pela indústria e estabelece-se a criação de padrões, o trabalho alienado e a busca incessante pelo capital. Os indivíduos passam, portanto, a abrir mão de suas aptidões naturais e a “inserir-se” no sistema capitalista, de modo a produzir mais e acumular mais capital – seja porque perderam seus empregos para as máquinas, seja porque seu trabalho passa a ser desvalorizado se não está em consonância com o sistema.

 

A arte, nesse momento, também passou a fazer parte dos modos de produção da sociedade capitalista, sendo a burguesia a responsável pelo controle dos meios de produção na cultura. A arte passou a ser questionada em si mesma, surgindo diversas novas formas de expressões artísticas que atendessem como resposta à pergunta “o que é arte?”.

 

Essa pergunta é tão inquietante que até hoje não há um consenso. Se grafite é arte, posso chamar pixação de arte também? Para ser arte precisa ser colorido, ter formas suaves, um rosto de uma criança e uma mensagem de boa esperança? Ou arte é simplesmente aquilo que nos faz refletir, olhar uma parede pichada e questionar-se a respeito das intenções, das formas, das pessoas, de como a cidade oprime uns e privilegia outros?

 

Nesse ponto, para entender minimamente a pixação, é preciso saber que é uma forma de escrita tipicamente paulistana, de ocorrência única no mundo, que privilegia a letra em detrimento de figuras e desenhos. As letras pontiagudas são feitas com pouco tempo e com o espaço disponível no momento – que acompanham a verticalização da cidade. A cultura da pixação em São Paulo possui vocabulário e, até mesmo, alfabeto próprio. Tanto é assim que o filme Pixo[2] apresenta um pixador que apenas consegue identificar as letras do alfabeto da pixação. Portanto, em uma análise preliminar, para a cultura tradicional, esse indivíduo seria classificado como analfabeto.

 

Afirma o pixador não identificado, quando solicitado que leia uma frase escrita no alfabeto tradicional: “Letra de forma, letra de forma… Isso aí eu não entendo. Passei 8 anos na escola, 8ª série e, tipo, essas aí eu não entendo, só consigo ler pixo. (…) Sou meio analfabeto, mas pixação dá pra entender pelas letras.”. De acordo o filme, o entrevistado não tem conhecimento suficiente para ler o alfabeto romano, o qual utilizamos. Todavia, de pronto, o pixador identifica e lê todos os caracteres do universo da pixação que estão grafados no muro.

 

Ora, naquele momento, os analfabetos somos nós.

 

Juridicamente, essa discussão torna-se tão complexa que sequer é abordada. Determina-se que grafite é arte, é belo, é aceito. Define-se que pixo é uma letra qualquer escrita por um marginal. Entende-se que o grafite deve ser estimulado e a pixação, banida. Só consigo pensar na hipocrisia que é determinar o que é bonito ou não em uma sociedade em que todos os padrões estéticos são impostos e nunca poderão ser escolhidos livremente.

 

Berman[3], nesse ponto, avalia que “até mesmo as ideias mais subversivas precisam manifestar-se através dos meios disponíveis no mercado” e continua: “Na medida em que atraiam e insuflem pessoas, essas ideias se expandirão e enriquecerão o mercado, colaborando, pois, para ‘incrementar o capital’. (…) A sociedade burguesa gerará um mercado para ideias radicais”.

 

Observando a arte urbana contemporânea, Berman parece certo a respeito da arte radical, pois, analisando o grafite, vê-se uma arte extremamente rentável, agradável aos olhos e, mesmo retratando duramente o sistema, gera capital e aceitação do governo e dos opressores, que se veem satisfeitos com o lucro obtido através do financiamento de autocríticas.

 

Além disso, o sistema capitalista mostra-se tão perspicaz que transforma até mesmo o pixo em “arte lucrativa”. Não é difícil pagar R$100 em uma camiseta na Vila Madalena que contenha fotos de pixos pela cidade. As letras pixadas, a arte marginal da periferia – que representam a opressão e a exclusão social – agora estampam tecidos para a classe média.

 

Contudo, a arte de rua não deixa de ser representativa. Não se pode observar o grafite como uma arte que agrada aos interesses do capital ou somente enxergar o pixo que estampa camisetas descoladas. A arte de rua é mais do que isso e ganhar dinheiro explorando-a é colocar comida na mesa de quem está trabalhando duro – por si, pela arte e pelo movimento hip hop. O que ocorre na relação capitalismo-arte é uma distorção completa do sistema com o fito de se obter mais capital. E a lição que vale é a de sempre: não culpar os oprimidos.

 

A arte de rua, seja a pixação, o grafite, ou qualquer outra forma exposta, propõe uma discussão não somente sobre a arte, mas sobre a ocupação da cidade pelos cidadãos, a conquista da rua por seus moradores. A arte de rua é um espelho lindamente enquadrado que reflete o cotidiano da periferia – e é isso que muitos se recusam a enxergar.

 

[1] BERMAN, Marshall. Tudo que é solido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das letras, 1997. P. 10.

[2] PIXO. Direção: João Wainer e Roberto T. Oliveira. Produção: Roberto T. Oliveira. São Paulo: Sindicato Paralelo Filmes, 2010, 61 minutos.

[3] BERMAN, Marshall. Tudo que é solido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das letras, 1997. P. 114.

 

 

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