“As leis são como as salsichas: é melhor não estar por perto
quando elas estão sendo feitas” – Otto von Bismarck[1]
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 241, apelidada pela imprensa de “PEC dos gastos”, “PEC do teto” ou, com um viés marcadamente contrário à proposta, “PEC do mal”, vem recebendo uma atenção ímpar da mídia, colocando no centro do debate público algo um pouco difícil de se entender sem uma formação sólida em direito: uma norma em processo de elaboração. Talvez porque os jornais não são feitos por juristas – pelo que sem dúvidas somos todos gratos – não há uma preocupação muito grande em se explicar ao leitor o que está acontecendo nas Casas do Congresso Nacional enquanto os deputados e senadores debatem, por semanas, se a PEC deve ou não passar, isto é, se deve entrar em vigor, perdendo seu “P” inicial para ser simplesmente uma “Emenda Constitucional” (EC). Isso deixa muitas perguntas sem resposta: é difícil entender por que, por um lado, a PEC precisa ser aprovada duas vezes em cada uma das Casas para se tornar uma norma plena, e, por outro, o Projeto de Lei (PL) nº 4.330, norma também bastante polêmica que pretende regulamentar a terceirização, não precisa; ou como é possível que o Presidente Michel Temer reforme a educação básica do dia para a noite por meio da edição de uma Medida Provisória (MP), a de nº 746/16, mas dependa de um longo processo de discussão no Congresso para aprovar o congelamento do orçamento público.
Este artigo se propõe a dar ao leitor não jurista os instrumentos necessários a entender notícias – e, mais amplamente, o acontecimento social que elas têm por objeto – que tratam sobre normas jurídicas em formação. Apesar do título, não trato apenas daquilo que os juristas chamam de leis em sentido estrito. Por outro lado, para que o texto não se alongue demais, e também por conta da menor relevância de espécies normativas como leis delegadas e decretos legislativos, me limitarei a três espécies normativas: PECs, PLs e MPs.
Normas?
Norma é um termo muito amplo, complexo e e controverso. Há teses enormes escritas por estudantes de pós-graduação e professores apenas para se explicar o que se entende por “norma”[2]. Para os fins deste artigo, uso o termo para me referir a leis, emendas constitucionais, leis delegadas, atos administrativos normativos e outros tipos de manifestação do Estado que devem ser obedecidos pelas pessoas. Mais especificamente, quero tratar daquelas cuja formação depende de algum tipo de participação do Congresso Nacional. Também não abordarei normas estaduais ou municipais.
Leis ordinárias e projetos de lei (PL)
Leis Ordinárias, propostas por meio de Projetos de Lei (PLs), são um tipo comum de norma. O Código Civil, o Código de Trânsito, o Código de Processo Civil, a Lei nº 8.666/93 (que trata de licitações) e a Lei nº 13.101/15 (que institui 24 de maio como o Dia Nacional do Milho(!)) são todas Leis Ordinárias. Quando pensamos em leis, geralmente pensamos em leis ordinárias – mas não sempre. O Código Tributário Nacional (CTN), uma norma extremamente importante, não é uma Lei Ordinária, muito embora, à primeira vista, não pareça ter um conteúdo muito diferente do Código Civil, digamos. Isso acontece porque o assunto que o CTN regulamenta – o que são tributos, como eles devem ser instituídos e como eles não podem ser instituídos – só pode ser tratado por uma outra espécie normativa, chamada Lei Complementar. Quem determina isso é a Constituição, que institui que certos instrumentos podem veicular certas matérias e outros, não. O termo geralmente usado para designar essa exclusividade de um certo veículo normativo é “reserva”; assim, falamos em reserva da Lei Complementar, ou reserva da Lei (Ordinária). O que deve ficar claro, assim, é que nem todos os assuntos podem ser tratados por todos os tipos de norma, e o instrumento “escolhido” pelo Congresso ou pelo Governo depende em boa medida do que a Constituição determina.
Outra coisa que distingue as leis ordinárias de outras espécies normativas é como elas são formadas. Primeiro, alguém deve propor a lei. São legitimados a fazê-lo: deputados, senadores, o Presidente da República, o Ministério Público, alguns Tribunais e até mesmo os cidadãos, embora neste último caso a Constituição exija tantas assinaturas que muito poucas leis foram propostas por cidadãos em nosso país (um exemplo de sucesso é a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/10), uma lei de iniciativa popular muito importante). Também é importante saber que nem todas as leis podem ser propostas por qualquer um dos legitimados. Leis que tratam de remuneração de servidores públicos do Poder Executivo, por exemplo, só podem ser propostas pelo chefe desse Poder (no caso federal, o Presidente da República). É necessário ter isso em mente quando ouvimos, por exemplo, que uma das Casas aprovou um reajuste remuneratório para certa categoria do funcionalismo público, porque essa informação esconde o fato de que o reajuste deve ter sido proposto por alguma outra autoridade pública, que frequentemente é o próprio Presidente[3].
Por fim, a aprovação dos PLs tem um rito – isto é, um processo formal que determina se ele será aprovado ou rejeitado. Todo PL deve passar pelas duas Casas, mas geralmente começará na Câmara dos Deputados, a menos que um Senador o tenha proposto. Em cada Casa, o projeto passará por comissões, que são grupos menores de deputados ou senadores que estudam e debatem o projeto. Em regra, o que as comissões decidem não determina se o projeto será aprovado ou rejeitado, uma vez que a competência para aprovar ou rejeitar PLs é do Plenário, ou seja, da reunião de todos os deputados ou senadores. Por isso, podem passar a impressão errada as manchetes jornalísticas do tipo “Comissão aprova definição de família como união entre homem e mulher”[4], porque, embora essa informação chocante não seja falsa, ela é muito pouco relevante, uma vez que a aprovação de um PL por uma comissão (salvo alguns casos bastante raros) não tem nenhuma consequência fora da própria Casa em que ocorreu. Os parlamentares podem, ainda, propor emendas ao texto do PL, que devem ser apreciadas pelo Plenário.
Aprovado em uma das Casas por maioria simples (mais da metade dos deputados ou senadores presentes), o PL vai para a outra Casa, onde segue o mesmo rito. Se for aprovado lá também, o PL é encaminhado ao Presidente, que pode sancioná-lo ou vetá-lo. Vetar um projeto significa dizer que se discorda dele, e tem por consequência seu reenvio ao Congresso, que pode manter ou derrubar o veto. Se derrubá-lo, o PL volta ao Presidente, que tem a obrigação de promulgá-lo, isto é, de transformá-lo em lei. Promulgado o PL (seja porque o Presidente o sancionou, seja porque vetou e o veto foi derrubado), ele é transformado em lei, devendo, ainda, ser publicado em uma espécie de jornal editado pelo Poder Público chamado “Diário Oficial”, o que encerra o processo legislativo da lei ordinária.
Emendas constitucionais e suas propostas (PECs)
A Constituição é a norma mais importante do Brasil. Ela diz como o Estado deve funcionar, elenca os direitos mais importantes das pessoas e estabelece como devem ser editadas leis e outras normas. Além disso, nossa Constituição dá as regras de como ela própria pode ser modificada, e o instrumento principal para isso é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC).
Como a Constituição é tão importante e porque ela é hierarquicamente superior às outras normas (isto é, se uma norma não constitucional não for compatível com a Constituição, o que vale é o que diz a Constituição, e não essa outra norma), seu processo de alteração é mais difícil que o de aprovação de um PL. Sua estrutura, porém, é parecida: ela começa com uma proposta, cujos requisitos, porém, são mais rígidos que os de um PL (para se ter uma ideia, uma PEC de iniciativa parlamentar deve ser subscrita por 171 deputados ou 27 senadores, ao passo que um PL pode ser subscrito por um único parlamentar), seguida de uma votação em uma das Casas. Para que a PEC seja aprovada, não basta maioria simples; exige-se o “sim” de 308 deputados ou 49 senadores (três quintos da Casa), independentemente de quantos estejam presentes. Além disso, após ser aprovada, a PEC deve ser votada novamente na mesma Casa e receber nova aprovação antes de passar para a próxima. Esse processo é pensado para que, após a primeira aprovação, haja uma ampla discussão na sociedade a respeito do projeto, de modo a influenciar a decisão dos parlamentares na segunda votação. Apesar disso, já aconteceu de o Senado aprovar uma PEC com apenas alguns minutos de distância entre o primeiro e o segundo turno de votação, e o Supremo Tribunal Federal entendeu que isso não comprometia a validade da PEC![5]
Aprovada, a PEC independe de sanção, não podendo ser vetada pelo Presidente. Uma PEC aprovada pelo Congresso se tornará Emenda Constitucional.
O fluxograma do processo de tramitação de uma PEC é muito parecido com o de um PL, mas sem a parte da sanção ou veto e colocando dois turnos de votação em cada Casa.
Mas não é possível editar PEC sobre qualquer assunto. A Constituição afirma que ela própria não pode ser modificada em pontos fundamentais, como para extinguir direitos individuais ou comprometer a Federação e a separação dos poderes. Esses assuntos que não podem ser modificados por PEC chamam-se cláusulas pétreas.
E por que a proposta de congelar os gastos do governo é uma PEC, e não um PL? Um primeiro motivo é que a norma não teria sentido se pudesse ser facilmente modificada no futuro, uma vez que sua finalidade é justamente impedir que os governos seguintes elaborem orçamentos com despesas acima de um certo valor. Se isso fosse determinado em lei ordinária, seria possível voltar atrás de maneira relativamente simples. Além disso, a elaboração do orçamento é um processo complexo e amplamente regulado pela própria Constituição, de modo que não seria possível que uma lei ordinária o modificasse.
Medidas Provisórias (MPs)
As Medidas Provisórias (MPs) são muito diferentes das duas outras espécies de normas que abordei aqui porque elas não dependem da aprovação do Congresso para que tenham efeito. Muita gente as considera autoritárias, porque elas permitem que o Presidente crie normas novas imediatamente e sozinho, algo que geralmente depende da participação de 513 deputados, 81 senadores e do próprio Presidente em um difícil processo.
A Constituição parece ter imaginado as MPs como uma ferramenta drástica e excepcional, a ser usada apenas quando o processo legislativo fosse demasiadamente lento para resolver uma crise, já que exige que estejam presentes “relevância e urgência” para sua edição. Entretanto, desde os anos 90, MPs vêm sendo editadas para tratar de assuntos que não podem ser considerados urgentes, como as regras para concessão de seguro-desemprego (MP nº 665/14) ou mesmo para isentar de impostos fabricantes de urnas eletrônicas (MP nº 1.593-7/98). Embora tenha havido certa dúvida se essas MPs seriam válidas, o STF acabou decidindo que só em casos muito excepcionais seria possível invalidar uma MP por falta de relevância e urgência, o que, na prática, permite que o Presidente use as MPs quase como leis impostas sem a anuência do Congresso.
O fluxograma que descreve o rito uma MP seria bem simples: o presidente edita e a partir da publicação, ela já vale. Não acho conveniente tratar aqui do controle da MP pelo Congresso, porque ele é muito complicado e cheio de polêmicas. Basta saber que, depois da edição da PEC, o Congresso tem um prazo de alguns meses para decidir se ela deve ser mantida, transformando-se em Lei (Ordinária), ou rejeitada.
Há algumas matérias sobre as quais não se pode editar MP, como crimes e partidos políticos. Trata-se de uma vedação que serve para controlar o poder do Presidente na edição de MPs, evitando que elas sejam usadas para criar normas novas em campos que não demandam urgência ou exigem um debate extenso. Isso não chegou a impedir, porém, que o Governo recentemente editasse uma Medida Provisória modificando profundamente o Ensino Médio no Brasil, o que despertou críticas no sentido de que uma reforma desse gênero só poderia ser feita com amplo diálogo com diversos setores da sociedade[6]. O mecanismo da MP permitiu ao Governo impô-la.
[1] Tradução livre. Na verdade é provável que o Otto von Bismarck não tenha realmente dito essa frase. Segundo o Wikiquote (https://de.wikiquote.org/wiki/Otto_von_Bismarck#F.C3.A4lschlich_zugeschrieben, acesso em 27/10/2016), a citação em alemão (”Gesetze sind wie Würste, man sollte besser nicht dabei sein, wenn sie gemacht werden”) aparentemente deriva de uma frase em inglês publicada em um livro de março de 1869: “‘Laws,’ says that illustrious rhymer, Mr. John Godfrey Saxe, ‘like sausages, cease to inspire respect in proportion as we know how they are made’”. Mas a frase ainda hoje é popularmente atribuída a Bismarck, inclusive na Alemanha.
[2] Procurei no catálogo de bibliotecas da USP todas as obras com “norma” no título e ele encontrou 828 resultados: http://dedalus.usp.br/F/FKREPEN9HAKXFAYFXA1LIKLYK8MXU6CEK22X2JNJXJU1Y2QQ68-17698?func=find-b&request=norma&find_code=WTI&adjacent=N&local_base=USP01&x=53&y=6&filter_code_1=WLN&filter_request_1=&filter_code_2=WYR&filter_request_2=&filter_code_3=WYR&filter_request_3=&filter_code_4=WMA&filter_request_4=&filter_code_5=WBA&filter_request_5= (acesso em 27/10/2016).
[3] Esta notícia (http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/10/comissao-da-camara-aprova-reajuste-para-carreiras-da-policia-federal.html, acesso em 27/10/2016) é um exemplo disso: o reajuste para diversas categorias da Polícia Federal foi proposto pelo governo antes de ter sido aprovado pela comissão da Câmara dos Deputados encarregada de analisá-la.
[4] Como fez o G1 aqui: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/09/comissao-aprova-definir-familia-como-uniao-entre-homem-e-mulher.html (acesso em 27/10/2016).
[5] Foi a PEC 62/2009, que foi declarada parcialmente inconstitucional, mas por outros motivos. O Supremo decidiu isso nas ADIs 4357/DF, 4425/DF, 4372/DF e 4400/DF, rel. Min. Ayres Britto.
[6] A União Nacional dos Estudantes, por exemplo, destacou que a MP é um instrumento pouco adequado para a reforma: http://www.une.org.br/noticias/entidades-estudantis-e-professores-contra-a-reforma-do-ensino-medio/. Acesso em 27/10/2016.
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